terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

'O VINHO BOM'


Como a heresia é sempre inoculada na sã doutrina de Cristo na forma de uma gota de veneno incorporada a uma bela taça de vinho, convivemos hoje com realidades tão amargas e distorcidas que ainda as tomamos como vinho:

(i) ecumenismo: vinho ruim, miserável mesmo, para atender as mazelas aromáticas de bebedores de aguardente;

(ii) a comunhão na mão: vinho azedo e oxidado, vendido como vinagre;

(iii) livre liberdade de consciência católica: vinho mofado e mal cheiroso, tomado com náuseas, fechando-se bem as narinas.

Santa e bela Igreja Católica de todos os tempos: onde está o 'vinho bom' das Bodas de Caná?

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

OS GRANDES TESOUROS DA MÚSICA SACRA (II)


Ora, Pedro estava assentado fora, no pátio; e, aproximando-se dele uma criada, disse: 'Tu também estavas com Jesus, o galileu'. Mas ele negou diante de todos, dizendo: 'Não sei o que dizes'. E, saindo para o vestíbulo, outra criada o viu, e disse aos que ali estavam: 'Este também estava com Jesus, o Nazareno'. E ele negou outra vez com juramento: 'Não conheço tal homem'. E, daí a pouco, aproximando-se os que ali estavam, disseram a Pedro: 'Também tu és um deles, pois a tua fala te denuncia'. Então começou ele a praguejar e a jurar, dizendo: 'Não conheço esse homem'. E imediatamente o galo cantou. E lembrou-se Pedro das palavras de Jesus, que lhe dissera: 'Antes que o galo cante, três vezes me negarás'. E, saindo dali, chorou amargamente (Mt 26, 69-75).


Erbarme dich, mein Gott, um meiner Zähren Willen! - 'Tem piedade de mim, meu Deus, veja minhas lágrimas!' é uma ária para contralto da segunda parte da 'Paixão Segundo São Mateus', a obra prima de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Na ária, a solista pede perdão pela tríplice negação de Pedro e a música sustenta a comoção do seu amargo pranto. O lamento sublime fez com que a própria ária assumisse um patamar independente da 'Paixão', como um dos grandes triunfos da música sacra universal.

Erbarme dich, mein Gott,
um meiner Zähren willen!
Schaue hier, Herz und Auge
weint vor dir bitterlich.
Erbarme dich, mein Gott.

Tem piedade de mim, meu Deus,
e veja as minhas lágrimas!
Olha aqui, o coração e os olhos
choram amargamente diante de Ti.
Tem piedade de mim, meu Deus.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Rei da glória é o Senhor onipotente!' (Sl 23)

Primeira Leitura (Ml 3,1-4) - Segunda Leitura (Hb 2,14-18) -  Evangelho (Lc 2,22-40)

  02/02/2025 - FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR 

APRESENTAÇÃO DE JESUS NO TEMPLO


No Templo de Jerusalém, a Mãe de Deus e o Salvador do Mundo fazem cumprir integralmente as prescrições da lei mosaica: servir e seguir com retidão extrema a lei da Igreja: 'Todo primogênito do sexo masculino deve ser consagrado ao Senhor' (Lc 2,23). E, com a consagração do filho, a purificação da mãe. No Templo de Jerusalém, os mistérios de Deus se harmonizam na Apresentação de Jesus e na Purificação de Nossa Senhora.

Simeão, o velho Simeão, tão justo e piedoso que 'O Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor' (Lc 2,25-26), representa a Igreja. Jesus se doa, pelas mãos de Maria, à Igreja e à toda a humanidade. Doação reconhecida pela Igreja, nas palavras do Velho Simeão: 'meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel' (Lc 2,30-32).

Ao tomar a criança nos seus velhos e cansados braços, Simeão é a Igreja que acolhe Jesus. Ao ser recebido nos braços do velho sacerdote, Jesus acolhe para si o resgate e a redenção da humanidade pecadora. Neste encontro no Templo, é forjada a missão da Igreja: permanecer, ainda que envelhecida e cansada, nos braços de Cristo, até o último dia da humanidade. No encontro no Templo, é revelado o plano da salvação humana: 'Ele será um sinal de contradição' (Lc 2,34) que perpassa pela Paixão de Cristo: 'Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma' (Lc 2,35). Os mistérios de Deus começaram a ser revelados aos homens, pelo velho Simeão e pela sacerdotisa Ana, naquele dia no Templo de Jerusalém.

Santos e portentosos mistérios que levaram os próprios pais de Jesus à admiração profunda: 'O pai e a mãe de Jesus estavam admirados com o que diziam a respeito dele' (Lc 2,33). Com quanto zelo e reflexão profunda não devem ter guardado nos corações aqueles acontecimentos extraordinários, quando regressavam para Nazaré. E quanto zelo, admiração e louvor a Deus não devem ter experimentado nos dias, meses e anos seguintes, ao ver e testemunhar que aquele menino 'crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele' (Lc 2,40).

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCV)

 

Capítulo XCV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Purgatório na Terra em Substituição ao Purgatório Após a Morte - Servos de Deus: Irmão Gaspar Lourenço e Padre Michel de la Fontaine 

Além das vantagens que já consideramos, a caridade para com as almas do Purgatório é extremamente salutar para aqueles que a praticam, pois estimula o fervor no serviço a Deus e inspira os pensamentos mais santos. Pensar nas almas do Purgatório é refletir sobre os sofrimentos da outra vida; é lembrar que todo pecado exige expiação, seja nesta vida ou na próxima. Ora, quem não entende que é melhor fazer satisfação aqui, já que os castigos futuros são tão terríveis? Uma voz parece emergir do Purgatório, repetindo estas palavras da Imitação de Cristo: 'É melhor purgar agora os nossos pecados e cortar os nossos vícios do que deixá-los para purgação depois'.

Lembramos também desta outra sentença, presente no mesmo capítulo: 'Lá, uma hora de punição será mais grave do que cem anos da mais amarga penitência aqui'. Penetrados por este temor salutar, suportamos voluntariamente os sofrimentos da vida presente e dizemos a Deus com Santo Agostinho e São Luís Bertrand: Domine, hic ure, hic seca, hic non parcas, ut in aeternum parcas – 'Senhor, aplica aqui o ferro e o fogo; não me poupes nesta vida, para que me poupes na próxima'. Com esses pensamentos, o cristão encara as tribulações da vida presente, especialmente os sofrimentos de uma doença dolorosa, como um Purgatório na terra que o dispensará do Purgatório após a morte.

No dia 6 de janeiro de 1676, faleceu em Lisboa, aos sessenta e nove anos, o servo de Deus Gaspar Lourenço, Irmão Coadjutor da Companhia de Jesus e porteiro da casa professada dessa ordem. Ele era cheio de caridade para com os pobres e para com as almas do Purgatório. Não sabia poupar esforços no serviço dos desafortunados e era maravilhosamente engenhoso em ensinar-lhes a bendizer a Deus pela miséria que lhes garantia o Céu. Ele próprio estava tão penetrado da felicidade de sofrer por Nosso Senhor que crucificava sua carne quase sem medida, e acrescentava outras austeridades nas vigílias dos dias de Comunhão.

Aos setenta e oito anos, não aceitava dispensa dos jejuns e abstinências da Igreja e não deixava passar um dia sem ao menos duas disciplinas corporais. Mesmo em sua última enfermidade, o Irmão Enfermeiro observou que a proximidade da morte não o fazia tirar a camisa de cilício, tamanha era sua vontade de morrer na cruz. Os sofrimentos de sua agonia, que foram cruéis, poderiam ter substituído as mais rigorosas penitências. Quando lhe perguntaram se sofria muito, ele respondeu com ar alegre: 'Estou passando pelo meu Purgatório antes de partir para o Céu'.

O Irmão Lourenço nasceu no dia da Epifania e Nosso Senhor revelou-lhe que esse mesmo dia seria também o de sua morte. Ele indicou a hora na noite anterior; e, quando o Irmão Enfermeiro o visitou ao amanhecer, disse com um sorriso de dúvida: 'Não é hoje, irmão, que esperas desfrutar da visão de Deus?' 'Sim' - respondeu ele - 'assim que eu receber o Corpo do meu Salvador pela última vez'. De fato, ele recebeu a Sagrada Comunhão e expirou sem luta e sem agonia. Há, portanto, todas as razões para acreditar que ele falava com um conhecimento sobrenatural da verdade ao dizer: 'Estou passando pelo meu Purgatório antes de partir para o Céu'.

Outro servo de Deus recebeu da própria Santíssima Virgem a garantia de que seus sofrimentos terrenos substituiriam o Purgatório. Refiro-me ao Padre Michel de la Fontaine, que adormeceu suavemente no Senhor no dia 11 de fevereiro de 1606, em Valência, na Espanha. Ele foi um dos primeiros missionários a trabalhar pela salvação do povo peruano. Sua maior preocupação ao instruir os novos convertidos era inspirá-los a um horror soberano ao pecado e levá-los a uma grande devoção à Mãe de Deus, falando das virtudes daquela admirável Virgem e ensinando-os a rezar o rosário em sua honra.

Maria, por sua vez, não recusava os favores que lhe eram pedidos. Um dia, quando exausto de cansaço, estava prostrado no chão, sem forças para se levantar, ele foi visitado por aquela que a Igreja, com razão, chama de Consoladora dos Aflitos. Ela reanimou sua coragem, dizendo-lhe: 'Confiança, meu filho; suas fadigas substituirão o Purgatório para você; suporte seus sofrimentos pacientemente, e, ao deixar esta vida, sua alma será recebida na morada dos bem-aventurados'.

Essa visão foi, para o Padre Michel de la Fontaine, durante a vida, mas especialmente na hora de sua morte, uma fonte abundante de consolação. Em gratidão por esse favor, ele praticava, a cada semana, alguma penitência especial. No momento em que expirou, um religioso de eminente virtude viu sua alma partir para o Céu acompanhada pela Santíssima Virgem, pelo Príncipe dos Apóstolos, São João Evangelista e São Inácio, o fundador da Companhia de Jesus.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

TESTAMENTO ESPIRITUAL DE SÃO JOÃO BOSCO


Antes de partir para a minha eternidade, devo cumprir alguns deveres para convosco e assim satisfazer o grande desejo do meu coração. Antes de mais nada agradeço-vos com o mais vivo afeto do coração a obediência que me prestastes e todo trabalho que tivestes para sustentar e propagar a nossa Congregação.

Eu vos deixo aqui na terra, mas apenas por pouco tempo. Espero da infinita misericórdia de Deus que um dia nos possamos encontrar todos na feliz eternidade. Lá vos espero. Recomendo-vos que não choreis a minha morte. É uma dívida que todos havemos de pagar, mas depois será copiosamente recompensado todo trabalho sofrido pelo amor de nosso Mestre, o nosso Bom Jesus.

Em vez de chorar, fazei firmes e eficazes resoluções de permanecerdes fiéis à vocação até a morte. Ficai atentos e cuidai a fim de que o amor do mundo, a afeição dos parentes, tampouco o desejo de uma vida mais cômoda não vos levem ao grande despropósito de profanar os santos votos e assim transredir a profissão religiosa, com que nos consagramos ao Senhor. Nenhum de nós tome de novo o que já demos a Deus.

Se me amastes no passado, continuais a amar-me no futuro com a exata observância das nossas Constituições. Morreu o vosso primeiro Reitor. Mas o nosso verdadeiro Superior, Jesus Cristo, não morrerá. Será ele sempre o nosso Mestre, nosso Guia, nosso Modelo. Não vos esqueçais, porém, de que a seu tempo será o nosso Juiz e Remunerador da fidelidade em seu serviço.

O vosso Reitor já não vive, mas será eleito outro que cuidará de vós e da vossa eterna salvação. Ouvi-o, amai-o, obedecei-lhe, rezai por ele, como fizestes para comigo. Adeus, queridos filhos, adeus. No céu vos espero. Lá falaremos de Deus, de Maria, Mãe e sustentadora da nossa Congregação; lá bendiremos por todo o sempre esta nossa Congregação, cujas regras por nós observadas contribuíram poderosa e eficazmente para a nossa salvação. Bendito seja o nome do Senhor de agora até o século futuro (Sl 113, 2). Em ti, Senhor, esperei, e não serei confundido na eternidade (Sl 71,1).

(São João Bosco)

São João Bosco, rogai por nós!

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (IV)

P.7 - E no caso de uma pessoa completamente ignorante da fé [a chamada ignorância invencível] em Jesus Cristo e da sua Igreja, isso [a consciência e a razão] não a poderia salvar?

Esta também é uma proposição muito atraente e temo que, por não ser devidamente considerada, ela seja ocasião de um erro perigoso para muitos; portanto, vamos tentar examiná-la de forma completa. E aqui devemos observar que duas questões diferentes são comumente misturadas quando as pessoas falam sobre a chamada ignorância invencível: (I) uma pessoa que é invencivelmente ignorante da verdadeira fé ou Igreja de Cristo será condenada precisamente por essa ignorância? Ou seja, essa ignorância será imputada a ela como um crime? Ou essa ignorância invencível a desculpará da culpa de não crer? A isso respondo que, como nenhum homem pode ser culpado por um pecado ao não fazer o que está absolutamente fora de seu poder, portanto, uma pessoa que é invencivelmente ignorante da verdadeira fé e Igreja de Cristo não será condenada por essa ignorância; tal ignorância não será imputada a ela como um crime, mas sem dúvida a desculpará da culpa da descrença: nisso todos os teólogos concordam sem dúvida ou hesitação. 

Um pagão, por exemplo, que nunca ouviu falar de Jesus Cristo, não será condenado como criminoso precisamente pela falta de fé nEle; um herege que nunca teve nenhum conhecimento da verdadeira Igreja de Cristo não será condenado como culpado por não estar em comunhão com essa Igreja. Até aqui, a primeira questão não admite disputa. 

A segunda questão é: (II) pode uma pessoa invencivelmente ignorante da verdadeira fé ou Igreja de Jesus, vivendo e morrendo nesse estado, ser salva? Esta é uma questão muito importante, mas bem diferente da anterior, embora frequentemente confundida com ela. Agora, para responder a essa questão de forma clara e distinta, devemos considerar dois casos diferentes: primeiro, o dos muçulmanos, judeus e pagãos que, nunca tendo ouvido falar de Jesus Cristo ou da sua religião, são invencivelmente ignorantes dela; e, em segundo lugar, o dos diferentes grupos de cristãos que estão separados da verdadeira Igreja de Cristo por heresia.

P.8 -  O que se deve então dizer de todos aqueles muçulmanos, judeus e pagãos que, nunca tendo ouvido falar de Jesus Cristo ou da sua religião são, portanto, invencivelmente ignorantes em relação a ambos? Podem ser salvos, se viverem e morrerem nesse estado?

A resposta direta a isso é que eles não podem ser salvos; que nenhum deles 'pode entrar no reino de Deus'. É verdade, como vimos acima, que não serão condenados precisamente por não terem a fé em Cristo, da qual são invencivelmente ignorantes. Mas a fé em Cristo, embora seja uma condição essencial para a salvação, é apenas uma condição; outras também são necessárias. E, embora a ignorância invencível certamente livre um homem do pecado, por não saber aquilo do que é invencivelmente ignorante, é impossível supor que essa ignorância invencível sobre um ponto substitua a falta de todas as outras condições exigidas. Agora, todos aqueles de quem falamos aqui estão no estado do pecado original - 'estranhos a Deus e filhos da ira' -  por não serem batizados; e é um artigo da fé cristã que, a menos que o pecado original seja apagado pela graça do batismo, não há salvação; pois o próprio Cristo declara expressamente: 'Em verdade, em verdade, vos digo, se alguém não nascer da água e do Espírito Santo, não poderá entrar no reino de Deus' (Jo 3,5).

E, de fato, se até mesmo os filhos de pais cristãos, que morrem sem o batismo, não podem ir para o céu, quanto menos aqueles que, além de não serem batizados, vivem e morrem na ignorância do verdadeiro Deus, de Jesus Cristo e de sua fé, e, por essa razão, podem ser considerados como tendo cometido muitos pecados atuais. Além disso, imaginar que pagãos, muçulmanos ou judeus que vivem e morrem nesse estado podem ser salvos é supor que a ignorância salvará adoradores de ídolos, de Maomé e blasfemadores de Jesus Cristo, tanto no pecado atual quanto no original; o que seria colocá-los em uma posição melhor do que os próprios cristãos e dos seus filhos. O destino de todos esses é decidido pelas Escrituras da seguinte forma: 'O Senhor Jesus será revelado do céu, com o anjo do seu poder, em uma chama de fogo, infligindo vingança àqueles que não conhecem a Deus e que não obedecem ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, os quais sofrerão punição eterna na destruição, longe da face do Senhor e da glória do seu poder' (2Ts 1,7-8). Isso é, de fato, uma resposta clara e decisiva à questão apresentada.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

PROTOCOLOS DO INFERNO CONTRA DEUS

Assim que Lúcifer foi autorizado a prosseguir com essas questões e se erguer da consternação em que ficou por algum tempo, ele começou a propor aos seus companheiros demônios novos planos de sua arrogância. Para isso, convocou todos e, colocando-se em uma posição elevada, falou-lhes: 'A vós, que por tantas eras seguis e ainda seguis meus estandartes em vingança das minhas injúrias, é conhecido o dano que sofri agora nas mãos deste Homem-Deus, e como, por trinta e três anos, Ele me guiou em engano, escondendo sua Divindade e ocultando as operações de sua alma, e como agora Ele triunfou sobre nós pela própria Morte que nós lhe trouxemos. Antes de assumir a carne, Eu o odiava e me recusava a reconhecê-lo como mais digno do que eu de ser adorado por toda a criação. Embora, por causa dessa resistência, tenha sido expulso do céu com vocês e degradado a esta condição abominável, tão indigna da minha grandeza e beleza anteriores, sou ainda mais atormentado ao me ver assim vencido e oprimido por este Homem e por sua Mãe. Desde o dia em que o primeiro homem foi criado, procurei sem descanso encontrá-los e destruí-los; ou, se não pudesse destruí-los, ao menos queria trazer destruição sobre todas as suas criaturas e induzi-las a não reconhecê-lo como seu Deus, e que nenhum delas jamais tirasse qualquer benefício de suas obras.

Este foi o meu intento, para isso toda a minha solicitude e esforços foram dirigidos. Mas em vão, pois Ele me venceu pela sua humildade e pobreza, me esmagou pela sua paciência, e, por fim, me despojou da soberania do mundo pela sua Paixão e morte terrível. Isso me causa uma dor tão excruciante que, mesmo que eu conseguisse lançar-lhe fora da destra do seu Pai, onde Ele se assenta triunfante, e se eu conseguisse arrastar todas as almas redimidas para este inferno, minha ira não seria saciada nem minha fúria apaziguada.

É possível que a natureza humana, tão inferior à minha, seja exaltada acima de todas as criaturas! Que seja tão amada e favorecida, a ponto de se unir ao Criador na pessoa do Verbo eterno! Que Ele devesse primeiro fazer guerra contra mim antes de executar essa obra, e depois me sobrecarregar com tal confusão! Desde o princípio, vi essa humanidade como meu maior inimigo; sempre me preencheu com uma aversão intolerável. Ó homens, tão favorecidos e dotados pelo vosso Deus, que eu abomino, e tão ardentemente amados por Ele! Como hei de impedir vossa boa sorte? Como hei de trazer sobre vós a minha infelicidade, já que não posso destruir a existência que recebestes? O que devemos agora começar, ó meus seguidores? Como restauraremos o nosso reinado? Como recuperaremos o nosso poder sobre os homens? Como os venceremos? Pois se os homens, a partir de agora, não forem os mais insensatos e ingratos, se não estiverem mais dispostos do que nós mesmos contra este Deus-homem, que os redimiu com tanto amor, é claro que todos eles o seguirão com zelo; nenhum notará os nossos enganos; eles abominarão as honras que insidiosamente lhes oferecemos e amarão o desprezo; buscarão a mortificação da carne e descobrirão o perigo do prazer e do descanso carnais; desprezarão as riquezas e os tesouros, e amarão a pobreza tão honrada por seu Mestre; e tudo o que pudermos oferecer aos seus apetites será abominado, imitando seu verdadeiro Redentor. Assim será destruído o nosso reinado, pois ninguém se somará ao nosso número neste lugar de confusão e tormentos; todos alcançarão a felicidade que perdemos, todos se humilharão até o pó e sofrerão com paciência; e minha ira e altivez não me servirão de nada.

Ah, ai de mim, que tormento causa esse erro em mim! Quando o tentei no deserto, o único resultado foi dar-lhe uma oportunidade de deixar o exemplo dessa vitória, por meio do qual os homens podem vencer com muito mais facilidade. As minhas perseguições apenas evidenciaram mais claramente a sua doutrina de humildade e paciência. Ao persuadir Judas a traí-lo, e aos judeus a sujeitá-lo à morte cruel da Cruz, apressei apenas a minha ruína e a salvação dos homens, enquanto a doutrina que eu procurava apagar foi apenas mais firmemente implantada. Como poderia Aquele que é Deus humilhar-se a tal ponto? Como poderia Ele suportar tanto dos homens, que são maus? Como poderia eu mesmo ter sido levado a ajudar tanto para tornar essa salvação tão copiosa e maravilhosa? Ó quão divina é a força daquele Homem, que poderia me atormentar e enfraquecer-me assim! E pode essa Mulher, sua Mãe e minha Inimiga, ser tão poderosa e invencível em sua oposição a mim? Tal poder é novo em uma mera criatura, e sem dúvida Ela o derivou do Verbo divino, a quem Ela revestiu com a carne humana. Através desta Mulher, o Todo-Poderoso tem guerreado incessantemente contra mim, embora Eu a tenha odiado em meu orgulho desde o momento em que a reconheci em sua imagem ou sinal celestial.

Mas se a minha indignação orgulhosa não deve ser acalmada, nada me aproveita a minha guerra perpétua contra esse Redentor, contra a sua Mãe e contra os homens. Agora então, demônios que me seguis, agora é o momento de ceder à nossa ira contra Deus. Venham todos para tomar conselho sobre o que devemos fazer; pois desejo ouvir as vossas opiniões'.

Alguns dos principais demônios deram suas respostas a essa proposta terrível, incentivando Lúcifer a sugerir diversos esquemas para impedir os frutos da Redenção entre os homens. Todos concordaram que não seria possível prejudicar a pessoa de Cristo, diminuir o valor imenso dos seus méritos, destruir a eficácia dos Sacramentos ou falsificar ou abolir a doutrina que Cristo havia pregado; ainda assim, resolveram que, de acordo com a nova ordem de assistência e favor estabelecida por Deus para a salvação dos homens, agora deveriam buscar novas maneiras de dificultar e impedir a obra de Deus por enganos e tentações muito maiores.

Referente a esses planos, alguns dos demônios astutos e maliciosos disseram: 'É verdade que agora os homens têm à sua disposição uma nova e poderosa doutrina e lei, novos e eficazes Sacramentos, um novo Modelo e Instrutor de virtudes, um poderoso Intercessor e Advogada nesta Mulher; ainda assim, as inclinações e paixões naturais da carne permanecem as mesmas, e as criaturas sensíveis e deleitosas não mudaram sua natureza. Vamos então, aproveitando-nos dessa situação com astúcia aumentada, frustrar tanto quanto pudermos os efeitos do que esse Deus-homem fez pelos homens. Comecemos uma guerra enérgica contra a humanidade, sugerindo novas atrações, excitando-os a seguir suas paixões, esquecendo tudo o mais. Assim, os homens, envolvidos com essas coisas perigosas, não poderão atentar para o contrário'.

Agindo segundo esse conselho, redistribuíram as esferas de trabalho entre si, de forma que cada esquadrão de demônios pudesse, com astúcia especializada, tentar os homens a diferentes vícios. Resolveram continuar propagando a idolatria no mundo, para que os homens não chegassem ao conhecimento do verdadeiro Deus e da Redenção. Onde a idolatria falhasse, concluíram, estabeleceriam seitas e heresias, para as quais escolheriam os mais perversos e depravados da raça humana como líderes e mestres do erro.

Foi então que, entre esses espíritos malignos, foi tramada a seita de Maomé, as heresias de Ário, Pelágio, Nestório, e quaisquer outras heresias que surgiram no mundo desde os primeiros tempos da Igreja até agora, junto com aquelas que têm em prontidão, mas que não é necessário nem apropriado mencionar aqui. Lúcifer se mostrou satisfeito com esses conselhos infernais, por se oporem à verdade divina e destruírem os próprios alicerces da salvação do homem, a saber, a fé divina. Ele lavrou elogios lisonjeiros e cargos elevados àqueles demônios que se mostraram dispostos e que se encarregaram de encontrar os ímpios originadores desses erros.

Alguns dos demônios se encarregaram de perverter as inclinações das crianças desde sua concepção e nascimento; outros de induzir os pais a negligenciarem a educação e instrução de seus filhos, seja por amor desordenado ou aversão, e a causar o ódio entre pais e filhos. Outros ofereceram-se para criar ódio entre maridos e esposas, para colocá-los no caminho do adultério, ou para fazer pouco da fidelidade prometida aos seus parceiros conjugais. Todos concordaram em semear entre os homens as sementes de discórdia, ódio e vingança, pensamentos orgulhosos e sensuais, desejo de riquezas ou honrarias, e sugerir razões sofísticas contra todas as virtudes que Cristo ensinou; acima de tudo, pretendiam enfraquecer a lembrança da sua Paixão e Morte, dos meios de salvação e das penas eternas do inferno. Por esses meios, os demônios esperavam sobrecarregar todos os poderes e faculdades dos homens com solicitude por assuntos terrenos e prazeres sensuais, deixando-lhes pouco tempo para pensamentos espirituais e para a própria salvação.

(Excertos da obra ‘A Cidade Mística de Deus’, da Venerável Maria de Ágreda)