As paixões são, pois, movimentos de sobressalto da sensibilidade que, sob a forma de amor ou ódio, de desejo ou aversão, de temor ou audácia, de alegria ou tristeza, nos levam espontaneamente para os bens sensíveis ou nos afastam dêles. O ideal cristão, longe de acomodar-se com as paixões, não terá como função própria exterminá-las e, sobre essas ruínas, estabelecer o seu império?
Quantas vezes teremos ouvido em torno de nós, em ambientes que se dizem católicos, alguns sofismas que desapontam, e dos quais se abusa com o fim de encobrir desmandos deploráveis: 'Il faut que jeunesse se passe' - A mocidade precisa divertir-se. Não será isto puro epicurismo? A mocidade precisa divertir-se ! Praticamente, significa que um rapaz, apenas porque é jovem, e não porque é homem, deve ceder ao impulso das paixões, sem tentar vencê-lo ou orientá-lo no sentido de um ideal superior.
Trata-se, não de negar a impetuosidade das paixões, sobretudo na mocidade; mas de saber se, só pelo fato de ser jovem, será permitido abandonar-se a elas sem constrangimento, e mesmo de caso pensado. Nada mais contrário aos ensinamentos da razão e da fé. Esses rapazes não serão um dia homens ? E, se o ideal do homem consiste no domínio das paixões, será possível crer que, de um dia para outro, decretado o fim da mocidade, um jovem seja capaz de, por um simples fiat de uma vontade desamparada, opor um dique irresistível às vagas tumultuosas que ele voluntàriamente desencadeou?
Eis os resultados nefastos de uma moral toda livresca que sacrifica de boa vontade a realidade a abstrações! Não, cem vezes não, a mocidade não se deve divertir no sentido dado pelo mundo. Repito ainda: a educação do caráter não é obra de um dia. Depois de escravos das paixões durante vinte anos ou mais, não dependerá de nós livrar-nos subitamente dêsse jugo e dominá-lo.
Quererá isso dizer que, em nome do ideal cristão, devemos visar uma impassibilidade quimérica, sufocar as paixões no início, a fim de assegurarmos o domínio sobre nós mesmos? Essa atitude estóica, tal como a precedente, nada tem de humano: é contra a natureza. 'Qui veut faire l'ange fait la bête' - disse Pascal, e a experiência vem prová-lo. Ora, toda a fôrça e atrativo do ideal cristão vem de que esse ideal é humano por excelência. A graça só nos é dada para aperfeiçoarmos nossa natureza. Tudo aquilo que for contra a natureza é, por isso mesmo, anticristão.
Não precisamos de outra prova além do exemplo de Jesus Cristo, nosso modelo. Basta abrir o Evangelho para verificar que o Filho do homem não foi isento de paixões. Os exploradores do povo, os fariseus, excitaram-lhe a cólera; Ele chorou sobre Jerusalém infiel e sôbre o túmulo de seu amigo Lázaro; na agonia, sofreu as emoções terríveis do temor; na última ceia, demonstrou pelos discípulos uma ternura intensa, desejou ardentemente comer a páscoa com êles; amou o sofrimento; teve enfim a loucura da cruz. Tudo isso não será uma prova evidente de que nem toda paixão é repreensível e que o ideal humano encarnado no Cristo não constitui um exemplo apenas para a vontade intelectual, mas também para o cérebro, os nervos, os músculos, o coração, para todas as forças que nos foram concedidas, para a carne e para o sangue?
Não quer isso dizer que todas as paixões sejam boas, seja qual for a direção que tomem ou os excessos em que caiam. As paixões são boas quando nos permitem tomar de assalto o ideal proposto pela fé à nossa atividade; são más quando dele nos afastam e nos paralisam a vontade. Eis a doutrina católica sôbre as paixões. Não é acanhada demais nem excessivamente larga: é conforme à verdade. E a verdade é que as paixões fortes, como as da mocidade, se forem bem orientadas, e ligadas pela vontade ao ideal cristão, poderão facilitar-nos a ascensão para esse ideal, dar um brilho ao olhar, uma auréola à fronte que seduzam os homens e possam restituir o vigor aos mais fracos e aos mais insensíveis.
Não temamos as paixões. Elas devem servir de trampolim para nos lançarmos à conquista do caráter. Há, sem dúvida, em tudo isso, algumas condições a examinar; há uma tática a observar. Mas, para pô-la em prática, já é bastante saber que a vida cristã não age sobre um cadáver humano e que não é necessário - muito ao contrário - ter aniquilado em nós o homem, para se ter o direito de nos proclamarmos cristãos.
(Excertos da obra 'A educação do caráter', pelo Padre Gillet)