97. É necessário discernir no Evangelho as coisas que são de conselho e as que são de preceito. Renunciar a tudo o que se tem e sofrer a pobreza por amor a Deus é só de conselho, mas renunciar a si mesmo e ser pobre de coração é de preceito. E, da mesma forma, certas humilhações exteriores podem ser apenas de conselho, mas a humildade de coração é sempre de preceito e, como não só é possível cumprir todos os preceitos de Deus, mas também, com a ajuda da sua graça, torna-se fácil e doce para nós praticá-los; até mesmo os leigos têm muitas grandes oportunidades de se tornarem santos simplesmente pelo exercício da humildade. Para fazer de um homem de mente mundana um santo, basta torná-lo um cristão.
Quando pensamentos como esses surgem nos recônditos secretos do coração: Eu fiz essa fortuna com meu conhecimento, com minha indústria; eu adquiri esse mérito, essa reputação por meu próprio valor, minha virtude, minha engenhosidade, é suficiente elevar o coração a Deus e dizer como o Homem Sábio: 'Como poderia subsistir qualquer coisa, se Vós não o tivésseis querido?' [Sb 11, 25]. Ó meu Deus, como eu poderia ter feito a menor coisa, se Vós não a tivésseis desejado? Essa é a verdadeira humildade e nela reside o verdadeiro conhecimento e a santidade. A alma é santa na medida em que é humilde, porque na mesma medida em que tem santidade, tem-se a graça, e na mesma medida em que tem a graça, tem-se a humildade, porque a graça só é dada aos humildes. Do fundo do meu coração, ó meu Deus, eu vos peço isso, e como o salmista eu exclamo: 'Renova em mim um espírito reto' [Sl 1, 12].
98. Mas o maior motivo que temos para nos obrigar a ser humildes é o exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo, que desceu do céu para nos ensinar a humildade de que tanto necessitamos para curar nosso orgulho, a causa de todos os nossos males e o maior impedimento para nossa salvação eterna. 'Portanto, Cristo' - diz São Tomás - 'nos recomendou a humildade acima de tudo, porque por ela, mais especialmente, todos os obstáculos à salvação dos homens são removidos' [2a 2æ, qu. clxxi, art. 5 ad 3].
E, na verdade, Ele nos ensinou de forma excelente, não apenas por palavras, mas por ações. Meditemos sobre a vida de nosso Senhor na terra, desde a gruta de Belém até a cruz do Calvário; tudo respira humildade. Mais de uma vez, Ele declarou no Evangelho que veio não para cumprir a sua própria vontade, mas a do seu Pai celestial; não para buscar a sua própria glória, mas a do seu Pai celestial; e assim como pregou, assim viveu. Ele poderia ter glorificado a Majestade Divina de diversas outras maneiras, mas, em sua infinita sabedoria, escolheu o caminho da humildade como o mais adequado para render a Deus, por sua própria humildade, a honra da qual o orgulho do homem o privou.
Que humildade nascer em um estábulo... Aquele que era o Rei da Glória! Que humildade nele, que era a própria inocência, aparecer como pecador na circuncisão! Que humildade na fuga para o Egito para escapar da perseguição de Herodes, como se Ele fosse incapaz de se salvar de outra forma que não fosse pela fuga! Que humildade em sua sujeição a Maria e José, Ele que era o Rei de todo o universo! Que humildade em viver por trinta anos uma vida oculta de pobreza, Ele que poderia ter sido cercado por todo o esplendor do mundo! Com que humildade Ele suportou todos os insultos e calúnias que recebeu em troca das verdades que pregou e dos milagres que realizou, sem nunca reclamar ou lamentar os males que lhe foram feitos, nem a injustiça que lhe foi mostrada! Oh, se alguém pudesse olhar em seu coração, veria que a sua humildade não era obrigatória, mas voluntária, 'porque era a sua própria vontade' [cf Is 53,7].
Ele desejou humilhar-se dessa forma para que pudéssemos torná-lo nosso modelo, e Ele diz a cada um de nós: 'Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também' [Jo 13,15], o que significa que Ele nos deu esse exemplo para que pudéssemos aprender a nos humilhar, assim como Ele se humilhou de coração. Ah, será que esses exemplos de um Deus que se tornou homem e se humilhou não são suficientes para despertar em nós o desejo de nos tornarmos humildes também? 'Que o homem tenha vergonha de ser orgulhoso' - diz Santo Agostinho - 'por causa de quem um Deus se tornou humilde' [Enarr. in Ps. xviii].
99. E que lições de humildade não podemos aprender com a sagrada Paixão de nosso Senhor? São Pedro nos diz que Jesus Cristo sofreu por nós, deixando-nos o seu exemplo para que pudéssemos imitá-lo: 'Também Cristo sofreu por nós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos' [1Pd 2,21]. Ele não pretende que devamos imitá-lo sendo açoitados, coroados de espinhos ou pregados na cruz. Não; mas em toda a sua vida, e especialmente durante a sua Paixão, Ele repete a importante exortação de que devemos aprender com Ele a ser humildes: 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração' [Mt 11,29].
Que a nossa alma possa contemplar o Crucificado, 'que suportou a cruz, desprezando a vergonha' [Hb 12,2] e, ao confrontar assim a sua humildade com o nosso orgulho, ficaremos cheios de vergonha e confusão. E aprendamos ainda outra lição. Parece-lhe bem adorar a humildade de Jesus Crucificado e não desejar imitá-lo? Professar seguir Jesus Cristo em sua religião, que se baseia na humildade, e ainda assim sentir aversão e até mesmo ódio por essa mesma humildade? Mas quando tantas vezes ouvimos dizer e pregar que todo aquele que deseja ser salvo deve imitar o Salvador, em que imaginamos que essa imitação, que nos é ordenada e que é necessária para nossa salvação, deveria consistir senão na humildade? É muito bom dizer que devemos imitar Jesus, mas em que devemos imitá-lo senão nessa humildade que é o resumo de toda a doutrina e dos exemplos da sua vida?
Pois aquele Humilde na Cruz será o nosso Juiz e sua humildade será o padrão pelo qual se verá se seremos predestinados por tê-la imitado ou eternamente condenados por tê-la rejeitado. É necessário que estejamos firmemente convencidos dessa verdade. Deus não nos propõe que todos nós imitemos o seu Filho encarnado em todos os mistérios da sua vida. A solidão e a austeridade que Ele suportou no deserto são reservadas apenas para a imitação dos anacoretas. Em seus ensinamentos, Ele deve ser imitado apenas pelos apóstolos e pregadores do seu Evangelho. Na realização de milagres, só podem imitá-lo aqueles que foram escolhidos por Ele para serem coadjutores no firmamento da fé. Nos sofrimentos e na agonia do Calvário, ninguém pode imitá-lo, a não ser aqueles a quem Ele concedeu o privilégio do martírio.
Mas a humildade de coração praticada por Jesus Cristo em todas as horas da sua vida na Terra é dada a todos nós como um exemplo que somos obrigados a seguir e, a essa imitação, Deus uniu a nossa salvação eterna: 'A menos que você se converta e se torne como uma criancinha' [Mt 18,3]. Podemos acreditar que Jesus Cristo estava comparando-se com uma criancinha que tinha diante de si quando disse então: 'se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus' [Mt 18,3].
('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)