P. 14 - O que então se pode dizer daqueles que, sendo criados no âmbito de uma religião falsa, não têm oportunidade de ouvir sobre a verdadeira Igreja e fé de Cristo, ou que a ouvem apenas de uma forma falsa e odiosa? Podem esses ser salvos se viverem e morrerem em sua separação da comunhão da Igreja de Cristo e em ignorância invencível da verdade?
O autor erudito do livro chamado Caridade e Verdade*, que parece disposto a ir o mais longe possível em favor daqueles que não estão unidos na comunhão da Igreja de Cristo, admite sinceramente que é totalmente incerto se tais pessoas serão salvas, mesmo em ignorância invencível; pois, ao estabelecer o verdadeiro estado da questão, ele diz: 'O significado é que ninguém é salvo a menos que esteja na comunhão católica, seja de fato ou virtualmente, seja na realidade ou no desejo; e que não podemos ter certeza, falando de maneira geral, de que alguém seja salvo fora da Igreja Católica, que está invencivelmente ignorante da verdadeira Igreja e da verdadeira religião' (Cap.I; Q.3).
O fato é que não existe um único testemunho das Sagradas Escrituras que dê razão para pensar que alguém será salvo fora dessa comunhão; mas há muitos, como vimos acima, que afirmam fortemente o contrário. Todas as razões que são apresentadas em favor daqueles que estão fora da Igreja são tiradas de casos imaginários e de nossas ideias imperfeitas sobre a bondade de Deus ou da percepção que alguns formam de ser membro da verdadeira Igreja; e essas pessoas das quais falamos na presente questão fornecem os principais fundamentos dessas argumentações. Este é o raciocínio: suponha-se que um homem nasça e seja batizado em uma seita herética, e depois, quando atingir a maioridade, seja colocado em circunstâncias que impeçam que ele ouça sobre a verdadeira religião, exceto de maneira falsa e odiosa, que serve apenas para fazê-lo detestá-la e ficar cada vez mais preso à sua própria forma de pensar, e, por isso, viver em ignorância invencível da verdade.
É reconhecido por todos que esse homem, pelo batismo, é feito membro da Igreja de Cristo, e que, se morrer antes de chegar ao uso da razão, certamente será salvo em sua inocência batismal. Vamos agora supor mais ainda que, quando ele atinja a maioridade, continue a viver uma vida inocente e, cooperando com as graças que Deus lhe concede, persevere em sua inocência e faça o melhor que pode, de acordo com seu conhecimento, e faria melhor se soubesse: não é incoerente com a bondade de Deus supor que tal homem, vivendo e morrendo nesse estado, seria perdido? Não é ele, aos olhos de Deus, um verdadeiro membro da Igreja de Cristo, embora não esteja unido à sua comunhão? E, se ele morrer em sua inocência, não deve ser salvo? Esse é o argumento apresentado, e ele tem uma aparência atraente.
Mas deve ser observado que há fortes razões para duvidar que já tenha existido ou venha a existir tal caso: (i) Não há o menor fundamento nas Escrituras para supor isso; (ii) Como é impossível para o homem, em seu estado atual de queda, preservar sua inocência batismal por qualquer período de tempo, muito menos perseverar nela até o fim da vida, sem uma graça especial e extraordinária de Deus; e, como tal graça é justamente considerada uma das mais singulares bênçãos concedidas por Deus aos seus servos fiéis, que são membros da sua Igreja e que desfrutam de todas as poderosas ajudas que só podem ser encontradas em sua comunhão, para lhes permitir fazer isso; pode-se supor que Ele concederá essa preciosíssima bênção a alguém que está fora de sua comunhão e, consequentemente, privado de todas essas ajudas?
E se supusermos que ele perde sua inocência batismal ao cometer um pecado mortal, mas recupera a graça da justificação por meio de um arrependimento sincero, a dificuldade ainda aumenta. Pois um arrependimento sem a ajuda dos sacramentos suficientes para obter a graça da justificação inclui uma contrição perfeita, fundada no amor a Deus acima de todas as coisas; uma graça tão raramente concedida aos pecadores, mesmo dentro da Igreja, que o sacramento da Penitência é estabelecido por Jesus Cristo como o meio permanente para suprir nossa deficiência a esse respeito. Agora, qual a probabilidade de que Deus Todo-Poderoso conceda tão singular favor a alguém que tenha perdido sua inocência e não esteja na comunhão da sua Igreja para obter as ajudas necessárias para recuperá-la? Mas (iii) Suponhamos que o caso aconteça como proposto, e que Deus Todo-Poderoso dê a esse homem essas graças extraordinárias pelas quais ele preserva sua inocência batismal até o fim, morre na graça de Deus e vai para o céu, isso não seria fazer com que Deus se contradissesse e agisse diretamente contra todo o teor da sua vontade revelada? Todos os testemunhos das Escrituras concordam em provar que Deus designou a verdadeira fé em Jesus Cristo e a união com a Igreja de Cristo como condições necessárias para a salvação; e, no presente caso, a pessoa seria salva, mesmo sem ter tido a verdadeira fé em Jesus Cristo, sem estar em comunhão com a sua Igreja, mas que viveu e morreu em uma comunhão herética. Portanto, há grande razão para acreditar que tal caso jamais acontecerá, mas que uma pessoa criada na heresia, e invencivelmente ignorante da verdade, sendo privada das ajudas e graças que são consequências da verdadeira fé, e que só podem ser encontradas na verdadeira Igreja, não preservará sua inocência, mas, continuando na heresia, morrerá em seus pecados e será perdida; não precisamente porque não tenha a verdadeira fé, da qual supõe-se que seja invencivelmente ignorante, mas pelos outros pecados de que morrerá culpado.
* Charity and Truth, or Catholicks Not Uncharitable in Saying, That None Are Saved Out of the Catholick Communion (Because the Rule Is Not Universal), Edward Hawarden, 1809
P. 15 - Então ninguém que esteja em heresia e em ignorância invencível da verdade poderia ser salvo?
Deus nos livre de dizer tal coisa! Todas as razões acima apresentadas apenas provam que, se viverem e morrerem nesse estado, não serão salvos, e que, de acordo com a providência atual, não podem ser salvos; mas o grande Deus é capaz de tirá-los desse estado, de curar até mesmo a sua ignorância, embora invencível para eles em sua situação atual, de trazê-los ao conhecimento da verdadeira fé, à comunhão da sua Santa Igreja e à salvação: e acrescentamos ainda que, se Ele desejar, por sua infinita misericórdia, salvar qualquer um que esteja atualmente em ignorância invencível da verdade, para agir de maneira consistente consigo mesmo e com a sua Palavra Santa, Ele sem dúvida os levará à união com a sua Santa Igreja para esse fim, antes de morrerem.
P. 16 - Existem fundamentos nas Escrituras para essa doutrina?
Esta doutrina é baseada nas declarações mais positivas das Escrituras. Pois as Escrituras estabelecem esta verdade fundamental: 'O firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: o Senhor conhece os que são seus' (2Tm 2,19). Ou seja, Deus, desde toda a eternidade, conhece aqueles que, ao cooperar com as graças que Ele lhes concederá, perseverarão até o fim em sua fé e amor, e serão felizes com Ele para sempre. Agora, para toda a humanidade, sem exceção, e em qualquer estado, pagão, muçulmano, judeu ou herege, em ignorância invencível ou não, Deus, através dos méritos de Cristo, e por seu intermédio, dá as graças que Ele considera apropriadas para o seu estado atual, com o objetivo da sua salvação eterna; se eles cooperarem com as graças que Ele lhes dá, Ele lhes dará mais e maiores, até que os conduza ao fim feliz; mas, se resistirem e abusarem das graças que recebem, não lhes será dada mais graça, e eles serão deixados aos seus próprios caminhos, como justa punição pela sua ingratidão.
Portanto, aqueles a quem Deus Todo-Poderoso prevê que farão bom uso das suas graças e serão salvos, esses Ele os destina à vida eterna; e a todos esses, as Escrituras nos asseguram, Ele os conduzirá, no tempo e da maneira que julgar apropriada, ao conhecimento da verdadeira fé e à comunhão da sua Santa Igreja. Assim, 'O Senhor diariamente acrescentava à Igreja os que haviam de ser salvos' (At 2,47). Agora, o que o Senhor fez diariamente no tempo dos apóstolos, Ele continuará a fazer até o fim do mundo; e, como ninguém poderia ser salvo sem ser acrescentado à Igreja nesses dias, também ninguém poderá ser salvo depois disso; pois não há nova revelação desde os tempos dos apóstolos, descobrindo um caminho diferente para a salvação. Novamente, as Escrituras dizem que 'todos os que estavam predispostos para a vida eterna fizeram ato de fé' (At 13,48), isto é, foram trazidos à verdadeira fé que os apóstolos pregaram: o mesmo se fará sempre; pois, como antes, ninguém foi ordenado à vida eterna sem crer, assim também não haverá ninguém depois.
Nosso Salvador decide este ponto em termos claros quando diz: 'Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco. Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor' (Jo 10, 16). Aqui, Ele fala claramente daqueles que ainda não ouviram a sua voz, porque eram judeus ou pagãos, e não estavam unidos ao aprisco dos seus apóstolos e outros discípulos; ainda assim, Ele os chama de suas ovelhas, porque 'o Senhor conhece os que são seus' e Ele previu quem cooperaria com a sua graça e seguiria a sua voz; agora Ele declara expressamente: 'preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz'. Não bastava para sua salvação que estivessem dispostos em seus corações a responder ao seu chamado e fazer o melhor que pudessem, se soubessem melhor; era necessário que realmente fossem trazidos à comunhão do seu próprio aprisco, 'preciso conduzi-las também'; era necessário que tivessem a verdadeira fé em Cristo, 'e ouvirão a minha voz', para garantir a sua salvação; pois, como Ele diz um pouco depois: 'Minhas ovelhas ouvem a minha voz, e Eu as conheço, e elas me seguem, e Eu lhes dou a vida eterna, e não perecerão para sempre, e ninguém as arrebatará da Minha mão' (Jo 10,27).
Isso se torna ainda mais claro a partir do relato que São Paulo faz das várias etapas da Providência Divina na salvação dos eleitos e das principais graças concedidas a eles para esse grande fim; 'Porque aos que de antemão conheceu' - diz ele - 'também os predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho; e aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou' (Rm 8,29-30). 29. Primeiro, ele estabelece o 'firme fundamento de Deus', mencionado acima, 'que tem este selo: o Senhor conhece os que são seus' (2Tm 2,19). Deus, desde toda a eternidade, previu quem faria bom uso dos talentos que Ele lhes concederia, e quem, perseverando até o fim, seria dEle para sempre. Agora, diz o apóstolo, 'aqueles que Ele previu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho'; ou seja, Ele preordenou que todos os seus eleitos se assemelhassem a Jesus Cristo, 'despojando-se do velho homem com suas obras, e revestindo-se do novo ... segundo a imagem daquele que os criou' (Cl 3,9).
Para alcançar essa conformidade com Jesus Cristo, o próximo passo que Ele dá é chamá-los; pois, 'aos que predestinou, a esses também chamou', ou seja, ao conhecimento e à fé em Jesus Cristo, e à comunhão da sua Santa Igreja; isto é, Ele lhes concede graças internas e dispõe todas as circunstâncias externas para efetivamente conduzi-los a essa grande felicidade; e aos que assim chamou para a verdadeira fé, 'a esses também justificou', ou seja, sendo trazidos à verdadeira fé, 'sem a qual é impossível agradar a Deus', Ele continua a conceder-lhes mais graças, como medo, esperança, amor a Deus e arrependimento por seus pecados, com as quais, cooperando, são levados pelos seus santos sacramentos à graça da justificação. Graças maiores são concedidas a eles, e eles, perseverando até o fim em sua cooperação, são recebidos finalmente na glória eterna; pois 'aos que justificou, a esses também glorificou'. Aqui, é manifesto que nosso chamado à fé e à Igreja de Jesus Cristo é ordenado por Deus Todo-Poderoso como um passo essencial no processo de salvação, uma condição necessária a ser cumprida antes mesmo de sermos justificados da culpa de nossos pecados, e, consequentemente, que sem a verdadeira fé e fora da comunhão da Igreja de Cristo, não há possibilidade de salvação. Não é menos manifesto que, seja qual for o estado da pessoa, pagão, muçulmano, judeu ou herege, se Deus Todo-Poderoso prevê que essa pessoa cooperará com as graças que desde toda a eternidade Ele resolveu conceder-lhe, e permanecerá fiel até o fim, Ele de forma alguma permitirá que ela viva e morra em seu estado atual, mas ordenará as coisas, com a sabedoria divina para que, mais cedo ou mais tarde, ela seja levada à união com a Igreja de Cristo, fora da qual Ele ordenou que a salvação não pode ser encontrada.
(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)