sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

NOLI TIMERE!

O apóstolo que não logra entender bem qual deva ser a alma de seu apostolado achará incompreensível esta frase de Bossuet: 'Quando Deus quer que uma obra seja toda de sua mão, tudo reduz à impotência e a nada, e depois, opera'. Nada ofende tanto a Deus como o orgulho. Ora, na procura de bons êxitos, podemos, por falta de pureza de intenção, chegar a ponto de nos erigirmos como que em uma divindade, princípio e fim de nossas obras. Deus tem horror desta idolatria. Por isso, quando vê que a atividade do apóstolo carece dessa impessoalidade que sua glória exige da criatura, deixa, às vezes, o campo livre às causas segundas e o edifício não tarda em desmoronar-se.

Ativo, inteligente, dedicado, votou-se o operário ao trabalho com todo o entusiasmo de sua natureza. Conheceu, quiçá, êxitos brilhantes, alegrou-se com eles, olhou-os com complacência. É sua obra. A sua! Veni, vidi, vici [Vim, vi, venci]. Quase chegou a apropriar-se dessa frase célebre. Esperemos um pouco. Qualquer acontecimento permitido por Deus, uma ação direta de Satanás ou do mundo vingam atingir a obra ou a própria pessoa do apóstolo: ruína total! Mais lamentável, porém, é ainda a devastação interior, causada pela tristeza e pelo desânimo desse esforçado de ontem. Quanto mais exuberante havia sido a alegria, tanto mais profundo é agora o abatimento! 

Só nosso Senhor poderia reparar essas ruínas: 'Vamos, coragem' - diz Ele ao desanimado - 'em vez de operares sozinho, recomeça o trabalho comigo, por mim e em mim'. Mas o infeliz já não escuta essa voz. Tão exteriorizado anda que, para ouvi-la, precisaria de um verdadeiro milagre da graça; mas já não tem o direito de contar com ele, devido ao acúmulo de infidelidades. Só uma vaga convicção na onipotência de Deus e em sua providência é que paira sobre a desolação desse desditoso e e essa convicção não é suficiente para dissipar as ondas de tristeza que continuam a assaltá-lo. 

Quão diferente é o espetáculo do verdadeiro sacerdote, cujo ideal é reproduzir Nosso Senhor! Os dois grandes meios de ação, assim sobre o coração de Deus, como sobre o coração dos homens, são sempre, para esse sacerdote, a oração e a santidade. Certo é que ele dispende forças e com muita generosidade. Mas julga a miragem do bom êxito perspectiva indigna de verdadeiro apóstolo. Sobrevêm as borrascas, pouco importa a causa segunda que as originou. Como trabalhou apenas com Nosso Senhor, em meio das ruínas amontoadas, esse apóstolo ouve retinir no fundo de seu coração o mesmo Noli timere! [Não temais!] que outrora, durante a tempestade, restituía a paz e a segurança aos discípulos atemorizados.

(Excertos da obra 'A Alma de Todo Apostolado', de Jean-Baptiste Chautard)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

POEMAS PARA REZAR (LVIX)

O TEMPO

Mas não é que já estamos no final de fevereiro?
Mas não parece que foi ontem o ano que passou?
Janeiro se foi...
... e março logo vai chegar.
Entre janeiro e março, fevereiro vai ser aquele que passou
ou um fevereiro que nunca vai terminar.

Entre janeiro e março, para tantos, a vida voou esquecida das horas;
para outros, porém, ficou retida num dia qualquer de fevereiro
com a dimensão da eternidade.
Para tantos, um mês qualquer com outros tantos dias para cuidar de tantas coisas por cuidar
e, para outros, porém, um tempo que não existe mais.
Ó tempo, tão desprezado na vida,
como será desejado na hora da morte
e não valerá mais coisa alguma!

Quando o tempo for um anjo sem asas
que a morte do nada arrancou
vai valer todo o ouro do mundo
mas será só areia que o vento levou...

O tempo que vale todo o ouro do mundo é agora!

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (VII)

P. 14 - O que então se pode dizer daqueles que, sendo criados no âmbito de uma religião falsa, não têm oportunidade de ouvir sobre a verdadeira Igreja e fé de Cristo, ou que a ouvem apenas de uma forma falsa e odiosa? Podem esses ser salvos se viverem e morrerem em sua separação da comunhão da Igreja de Cristo e em ignorância invencível da verdade?

O autor erudito do livro chamado Caridade e Verdade*, que parece disposto a ir o mais longe possível em favor daqueles que não estão unidos na comunhão da Igreja de Cristo, admite sinceramente que é totalmente incerto se tais pessoas serão salvas, mesmo em ignorância invencível; pois, ao estabelecer o verdadeiro estado da questão, ele diz: 'O significado é que ninguém é salvo a menos que esteja na comunhão católica, seja de fato ou virtualmente, seja na realidade ou no desejo; e que não podemos ter certeza, falando de maneira geral, de que alguém seja salvo fora da Igreja Católica, que está invencivelmente ignorante da verdadeira Igreja e da verdadeira religião' (Cap.I; Q.3). 

O fato é que não existe um único testemunho das Sagradas Escrituras que dê razão para pensar que alguém será salvo fora dessa comunhão; mas há muitos, como vimos acima, que afirmam fortemente o contrário. Todas as razões que são apresentadas em favor daqueles que estão fora da Igreja são tiradas de casos imaginários e de nossas ideias imperfeitas sobre a bondade de Deus ou da percepção que alguns formam de ser membro da verdadeira Igreja; e essas pessoas das quais falamos na presente questão fornecem os principais fundamentos dessas argumentações. Este é o raciocínio: suponha-se que um homem nasça e seja batizado em uma seita herética, e depois, quando atingir a maioridade, seja colocado em circunstâncias que impeçam que ele ouça sobre a verdadeira religião, exceto de maneira falsa e odiosa, que serve apenas para fazê-lo detestá-la e ficar cada vez mais preso à sua própria forma de pensar, e, por isso, viver em ignorância invencível da verdade. 

É reconhecido por todos que esse homem, pelo batismo, é feito membro da Igreja de Cristo, e que, se morrer antes de chegar ao uso da razão, certamente será salvo em sua inocência batismal. Vamos agora supor mais ainda que, quando ele atinja a maioridade, continue a viver uma vida inocente e, cooperando com as graças que Deus lhe concede, persevere em sua inocência e faça o melhor que pode, de acordo com seu conhecimento, e faria melhor se soubesse: não é incoerente com a bondade de Deus supor que tal homem, vivendo e morrendo nesse estado, seria perdido? Não é ele, aos olhos de Deus, um verdadeiro membro da Igreja de Cristo, embora não esteja unido à sua comunhão? E, se ele morrer em sua inocência, não deve ser salvo? Esse é o argumento apresentado, e ele tem uma aparência atraente.

Mas deve ser observado que há fortes razões para duvidar que já tenha existido ou venha a existir tal caso: (i) Não há o menor fundamento nas Escrituras para supor isso; (ii) Como é impossível para o homem, em seu estado atual de queda, preservar sua inocência batismal por qualquer período de tempo, muito menos perseverar nela até o fim da vida, sem uma graça especial e extraordinária de Deus; e, como tal graça é justamente considerada uma das mais singulares bênçãos concedidas por Deus aos seus servos fiéis, que são membros da sua Igreja e que desfrutam de todas as poderosas ajudas que só podem ser encontradas em sua comunhão, para lhes permitir fazer isso; pode-se supor que Ele concederá essa preciosíssima bênção a alguém que está fora de sua comunhão e, consequentemente, privado de todas essas ajudas? 

E se supusermos que ele perde sua inocência batismal ao cometer um pecado mortal, mas recupera a graça da justificação por meio de um arrependimento sincero, a dificuldade ainda aumenta. Pois um arrependimento sem a ajuda dos sacramentos suficientes para obter a graça da justificação inclui uma contrição perfeita, fundada no amor a Deus acima de todas as coisas; uma graça tão raramente concedida aos pecadores, mesmo dentro da Igreja, que o sacramento da Penitência é estabelecido por Jesus Cristo como o meio permanente para suprir nossa deficiência a esse respeito. Agora, qual a probabilidade de que Deus Todo-Poderoso conceda tão singular favor a alguém que tenha perdido sua inocência e não esteja na comunhão da sua Igreja para obter as ajudas necessárias para recuperá-la? Mas (iii) Suponhamos que o caso aconteça como proposto, e que Deus Todo-Poderoso dê a esse homem essas graças extraordinárias pelas quais ele preserva sua inocência batismal até o fim, morre na graça de Deus e vai para o céu, isso não seria fazer com que Deus se contradissesse e agisse diretamente contra todo o teor da sua vontade revelada? Todos os testemunhos das Escrituras concordam em provar que Deus designou a verdadeira fé em Jesus Cristo e a união com a Igreja de Cristo como condições necessárias para a salvação; e, no presente caso, a pessoa seria salva, mesmo sem ter tido a verdadeira fé em Jesus Cristo, sem estar em comunhão com a sua Igreja, mas que viveu e morreu em uma comunhão herética. Portanto, há grande razão para acreditar que tal caso jamais acontecerá, mas que uma pessoa criada na heresia, e invencivelmente ignorante da verdade, sendo privada das ajudas e graças que são consequências da verdadeira fé, e que só podem ser encontradas na verdadeira Igreja, não preservará sua inocência, mas, continuando na heresia, morrerá em seus pecados e será perdida; não precisamente porque não tenha a verdadeira fé, da qual supõe-se que seja invencivelmente ignorante, mas pelos outros pecados de que morrerá culpado.

* Charity and Truth, or Catholicks Not Uncharitable in Saying, That None Are Saved Out of the Catholick Communion (Because the Rule Is Not Universal), Edward Hawarden, 1809

P. 15 - Então ninguém que esteja em heresia e em ignorância invencível da verdade poderia ser salvo?

Deus nos livre de dizer tal coisa! Todas as razões acima apresentadas apenas provam que, se viverem e morrerem nesse estado, não serão salvos, e que, de acordo com a providência atual, não podem ser salvos; mas o grande Deus é capaz de tirá-los desse estado, de curar até mesmo a sua ignorância, embora invencível para eles em sua situação atual, de trazê-los ao conhecimento da verdadeira fé, à comunhão da sua Santa Igreja e à salvação: e acrescentamos ainda que, se Ele desejar, por sua infinita misericórdia, salvar qualquer um que esteja atualmente em ignorância invencível da verdade, para agir de maneira consistente consigo mesmo e com a sua Palavra Santa, Ele sem dúvida os levará à união com a sua Santa Igreja para esse fim, antes de morrerem.

P. 16 - Existem fundamentos nas Escrituras para essa doutrina?

Esta doutrina é baseada nas declarações mais positivas das Escrituras. Pois as Escrituras estabelecem esta verdade fundamental: 'O firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: o Senhor conhece os que são seus' (2Tm 2,19). Ou seja, Deus, desde toda a eternidade, conhece aqueles que, ao cooperar com as graças que Ele lhes concederá, perseverarão até o fim em sua fé e amor, e serão felizes com Ele para sempre. Agora, para toda a humanidade, sem exceção, e em qualquer estado, pagão, muçulmano, judeu ou herege, em ignorância invencível ou não, Deus, através dos méritos de Cristo, e por seu intermédio, dá as graças que Ele considera apropriadas para o seu estado atual, com o objetivo da sua salvação eterna; se eles cooperarem com as graças que Ele lhes dá, Ele lhes dará mais e maiores, até que os conduza ao fim feliz; mas, se resistirem e abusarem das graças que recebem, não lhes será dada mais graça, e eles serão deixados aos seus próprios caminhos, como justa punição pela sua ingratidão.

Portanto, aqueles a quem Deus Todo-Poderoso prevê que farão bom uso das suas graças e serão salvos, esses Ele os destina à vida eterna; e a todos esses, as Escrituras nos asseguram, Ele os conduzirá, no tempo e da maneira que julgar apropriada, ao conhecimento da verdadeira fé e à comunhão da sua Santa Igreja. Assim, 'O Senhor diariamente acrescentava à Igreja os que haviam de ser salvos' (At 2,47). Agora, o que o Senhor fez diariamente no tempo dos apóstolos, Ele continuará a fazer até o fim do mundo; e, como ninguém poderia ser salvo sem ser acrescentado à Igreja nesses dias, também ninguém poderá ser salvo depois disso; pois não há nova revelação desde os tempos dos apóstolos, descobrindo um caminho diferente para a salvação. Novamente, as Escrituras dizem que 'todos os que estavam predispostos para a vida eterna fizeram ato de fé' (At 13,48), isto é, foram trazidos à verdadeira fé que os apóstolos pregaram: o mesmo se fará sempre; pois, como antes, ninguém foi ordenado à vida eterna sem crer, assim também não haverá ninguém depois. 

Nosso Salvador decide este ponto em termos claros quando diz: 'Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco. Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor' (Jo 10, 16). Aqui, Ele fala claramente daqueles que ainda não ouviram a sua voz, porque eram judeus ou pagãos, e não estavam unidos ao aprisco dos seus apóstolos e outros discípulos; ainda assim, Ele os chama de suas ovelhas, porque 'o Senhor conhece os que são seus' e Ele previu quem cooperaria com a sua graça e seguiria a sua voz; agora Ele declara expressamente: 'preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz'. Não bastava para sua salvação que estivessem dispostos em seus corações a responder ao seu chamado e fazer o melhor que pudessem, se soubessem melhor; era necessário que realmente fossem trazidos à comunhão do seu próprio aprisco, 'preciso conduzi-las também'; era necessário que tivessem a verdadeira fé em Cristo, 'e ouvirão a minha voz', para garantir a sua salvação; pois, como Ele diz um pouco depois: 'Minhas ovelhas ouvem a minha voz, e Eu as conheço, e elas me seguem, e Eu lhes dou a vida eterna, e não perecerão para sempre, e ninguém as arrebatará da Minha mão' (Jo 10,27). 

Isso se torna ainda mais claro a partir do relato que São Paulo faz das várias etapas da Providência Divina na salvação dos eleitos e das principais graças concedidas a eles para esse grande fim; 'Porque aos que de antemão conheceu' - diz ele - 'também os predestinou para serem conformes à imagem do seu Filho; e aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou' (Rm 8,29-30). 29. Primeiro, ele estabelece o 'firme fundamento de Deus', mencionado acima, 'que tem este selo: o Senhor conhece os que são seus' (2Tm 2,19). Deus, desde toda a eternidade, previu quem faria bom uso dos talentos que Ele lhes concederia, e quem, perseverando até o fim, seria dEle para sempre. Agora, diz o apóstolo, 'aqueles que Ele previu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho'; ou seja, Ele preordenou que todos os seus eleitos se assemelhassem a Jesus Cristo, 'despojando-se do velho homem com suas obras, e revestindo-se do novo ... segundo a imagem daquele que os criou' (Cl 3,9). 

Para alcançar essa conformidade com Jesus Cristo, o próximo passo que Ele dá é chamá-los; pois, 'aos que predestinou, a esses também chamou', ou seja, ao conhecimento e à fé em Jesus Cristo, e à comunhão da sua Santa Igreja; isto é, Ele lhes concede graças internas e dispõe todas as circunstâncias externas para efetivamente conduzi-los a essa grande felicidade; e aos que assim chamou para a verdadeira fé, 'a esses também justificou', ou seja, sendo trazidos à verdadeira fé, 'sem a qual é impossível agradar a Deus', Ele continua a conceder-lhes mais graças, como medo, esperança, amor a Deus e arrependimento por seus pecados, com as quais, cooperando, são levados pelos seus santos sacramentos à graça da justificação. Graças maiores são concedidas a eles, e eles, perseverando até o fim em sua cooperação, são recebidos finalmente na glória eterna; pois 'aos que justificou, a esses também glorificou'. Aqui, é manifesto que nosso chamado à fé e à Igreja de Jesus Cristo é ordenado por Deus Todo-Poderoso como um passo essencial no processo de salvação, uma condição necessária a ser cumprida antes mesmo de sermos justificados da culpa de nossos pecados, e, consequentemente, que sem a verdadeira fé e fora da comunhão da Igreja de Cristo, não há possibilidade de salvação. Não é menos manifesto que, seja qual for o estado da pessoa, pagão, muçulmano, judeu ou herege, se Deus Todo-Poderoso prevê que essa pessoa cooperará com as graças que desde toda a eternidade Ele resolveu conceder-lhe, e permanecerá fiel até o fim, Ele de forma alguma permitirá que ela viva e morra em seu estado atual, mas ordenará as coisas, com a sabedoria divina para que, mais cedo ou mais tarde, ela seja levada à união com a Igreja de Cristo, fora da qual Ele ordenou que a salvação não pode ser encontrada.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

ORAÇÃO: AVE REGINA CAELORUM

Ave Regina Caelorum (Salve, Rainha dos Céus) é um hino de louvor a Nossa Senhora, exaltando a sua realeza sobre o céu e os anjos, sua beleza e graça incomparáveis e sua condição de medianeira entre os homens e Nosso Senhor Jesus Cristo. De autor desconhecido, o hino constitui uma das quatro antífonas da Liturgia das Horas que se cantam em cada estação do ano litúrgico. 

                                                                                         (LiturgyTools.net)


Salve, Rainha dos Céus,
Salve, Senhora dos Anjos:
Salve, ó Raiz; Salve, ó Porta 
pela qual a luz veio ao mundo.
Rejubila, ó Virgem gloriosa,
Entre todas a mais bela.
Adeus, ó beleza radiante,
e intercede por nós junto ao Cristo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

BREVIÁRIO DIGITAL - ICONOLOGIA CRISTÃ (III)

A imagem da Sagrada Família, composta pela presença da Virgem Maria, São José e o menino Jesus é bastante conhecida e venerada pelos cristãos.

Embora esta imagem tenha sido pintada por grandes mestres tanto do Ocidente quanto na iconografia ortodoxa e bizantina, este ícone é ainda motivo de polêmica e questionamento. Tal polêmica busca confrontar a representatividade desta imagem familiar, no sentido de que a iconologia ortodoxa não entende São José como o chefe de uma 'Sagrada Família' (o que, nessa interpretação equivocada,  implicaria diretamente em uma percepção enfraquecida da virgindade de Maria), mas apenas como o guardião providencial da Mãe de Deus e do seu Divino Filho. Neste contexto, o apequenamento de São José seria essencial para se compreender a dimensão maior da hierarquia divina da Sagrada Família. Tal visão distorcida confronta-se com a própria natureza e significado da iconografia cristã.


Com efeito, os ícones repreesentam imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora e Mãe de Deus, dos Santos Anjos e dos Homens Santos e Veneráveis. Por meio destaa representação por imagens, somos incitados a contemplá-los, a lembrarmo-nos deles como modelos, como objetos de nosso amor e louvor e veneração, e não a verdadeira adoração que, segundo a nossa fé, convém apenas à natureza divina, porque a honra dada à imagem vai direta ao seu modelo e aquele que venera um ícone venera a pessoa que se encontra nele representada. Nestes termos, tem-se como óbvio que tal polêmica, mais do que infantil e distorcida, é absurdamente ímpia no sentido de se buscar impor, como premissa, o apequenamento de São José (a ponto de não se aceitar a sua inserção na representação na família de Nazaré) para a elevação (mais do que conhecida) do papel da Mãe de Deus e do seu Divino Filho no plano da salvação e redenção da humanidade.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'É feliz quem a Deus se confia!' (Sl 1)

Primeira Leitura (Jr 17,5-8) - Segunda Leitura (1Cor 15,12.16-20) -  Evangelho (Lc 6,17.20-26)

  16/02/2025 - SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM 

O SERMÃO DA MONTANHA


O chamado 'Sermão da Montanha', conjunto de proposições expostas por Jesus naquele tempo a uma 'grande multidão de gente de toda a Judeia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia' (Lc 6, 17) contempla, de forma admirável, a síntese do Evangelho e da doutrina cristã como legado do Reino dos Céus aos homens de todos os tempos.

O primado desta herança aos homens de todos os tempos se impôs quando o Senhor, diante da enorme multidão, volveu o seu olhar divino aos Apóstolos, antes de proferir as bem-aventuranças que expressam os preceitos e as virtudes que nos santificam e nos tornam herdeiros do Reino dos Céus. Na prática do amor e na busca da perfeição cristã, eis o legado de nossa santificação: 'Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor' (Jr 17, 7).

Essa via de santidade é expressa pelo Senhor sempre em termos da sua concepção oposta: 'Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!' (Lc 6, 20) versus 'Mas ai de vós, os ricos, porque tendes já a vossa consolação' (Lc 6, 24). 'Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados (Lc 6, 21) versus 'Ai de vós os que estais saciados, porque vireis a ter fome' (Lc 6, 25). 'Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!' (Lc 6, 21) versus 'Ai de vós, que agora rides, porque tereis luto e lágrimas!' (Lc 6, 25). 'Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem!' (Lc 6, 22) versus 'Ai de vós quando todos vos elogiam!' (Lc 6, 26).

Com efeito, os caminhos da vida eterna não se conformam aos atalhos do mundo. Como Filhos de Deus, somos, desde agora, peregrinos do Céu mergulhados nas penumbras da fé e nas vertigens das realidades humanas, na certeza confiante do eterno reencontro: 'Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus' (Lc 6, 23).

sábado, 15 de fevereiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVI)

Capítulo XCVI

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Conselhos Úteis das Santas Almas e a Bem Aventurada Maria dos Anjos - São Pedro Claver, o Apóstolo dos Escravos Negros, e as Almas do Purgatório
 
Além dos santos pensamentos que a devoção às almas santas sugere, estas às vezes contribuem diretamente para o bem-estar espiritual de seus benfeitores. Na vida da bem-aventurada Maria dos Anjos, do Ordem do Monte Carmelo, diz-se que é quase inacreditável a frequência com que as aparições das almas do Purgatório vinham implorar a sua assistência e depois agradecer pela sua libertação. Muito frequentemente, elas conversavam com a bem-aventurada irmã, dando-lhe conselhos úteis para ela mesma ou para suas irmãs, e revelando coisas relacionadas ao outro mundo. 'Na quarta-feira dentro da Oitava da Assunção' - ela escreveu - 'enquanto rezava as orações da noite, uma das nossas boas irmãs me apareceu. Ela estava vestida de branco, rodeada de glória e esplendor, e era tão bonita que não sei de nada aqui embaixo com que se possa compará-la. Temendo alguma ilusão do demônio, me armei com o Sinal da Cruz; mas ela sorriu e desapareceu logo em seguida. Pedi ao Nosso Senhor que não permitisse que eu fosse enganada pelo demônio. Na noite seguinte, a irmã apareceu novamente, e chamando-me pelo meu nome, disse: Venho da parte de Deus para te avisar que estou gozando da bem-aventurança eterna. Diga à nossa Madre Prioresa que não é o desígnio de Deus revelar-lhe o destino que a espera; diga-lhe que confie em São José e nas almas do Purgatório. Tendo dito isso, desapareceu'.

São Pedro Claver, Apóstolo dos Escravos Negros de Cartago, foi auxiliado pelas almas do Purgatório em seu trabalho apostólico. Ele não abandonou as almas de seus queridos irmãos negros após a morte deles; penitências, orações, missas, indulgências, na medida em que dependia dele, ele aplicava a elas, diz o Padre Fleurian, seu biógrafo. Assim, acontecia frequentemente que aquelas pobres almas aflitas, certas de seu poder junto a Deus, vinham pedir a assistência de suas orações. A fastiosidade e incredulidade de nosso século, diz o mesmo autor, não nos impede de relatar alguns poucos fatos adicionais. Eles podem, talvez, parecer dignos da zombaria dos livres-pensadores, mas não basta saber que Deus é o Senhor desses acontecimentos, e que são, além disso, tão bem autenticados que merecem um lugar em uma história escrita para leitores cristãos?

Um negro doente, a quem ele havia acolhido em seu quarto e colocado em sua própria cama, ouvindo um barulho de gemidos altos durante a noite, temeu e correu até o Padre Claver, que estava ajoelhado em oração. 'Padre!' - exclamou ele - 'que barulho terrível é esse, que me aterroriza e me impede de dormir?' 'Volte, meu filho' - respondeu o santo homem - 'e vá dormir sem medo'. Então, depois de ajudá-lo a se deitar, ele abriu a porta do quarto, disse algumas palavras, e imediatamente os gemidos cessaram.

Vários outros escravos negros estavam ocupados na tarefa de reparar uma casa a alguma distância da cidade, quando um deles saiu para cortar lenha em uma montanha próxima. Ao se aproximar da floresta, ouviu seu nome ser chamado do alto de uma árvore. Ele levantou os olhos na direção de onde vinha a voz, e não vendo ninguém, estava prestes a fugir e se juntar aos seus companheiros, mas foi parado em um caminho estreito por um espectro terrível, que lhe desferiu uma chuva de golpes com um chicote com pedaços de ferro quente, dizendo: 'Por que você não trouxe o seu rosário? Leve-o consigo sempre e reze-o pelas almas no Purgatório'. O fantasma então ordenou que ele pedisse à dona da casa três moedas de ouro que lhe eram devidas e que ele as entregasse ao Padre Claver, para que missas fossem celebradas por sua intenção, após o que desapareceu.

Enquanto isso, o barulho dos golpes e os gritos do homem trouxeram seus companheiros até o local, onde o encontraram mais morto do que vivo, coberto pelas feridas que recebera e incapaz de pronunciar uma palavra. Eles o levaram até a casa, onde a dona confirmou que realmente devia a quantia de dinheiro a um negro que havia falecido algum tempo antes. O Padre Claver, ao ser informado do ocorrido, celebrou as missas solicitadas e deu então um rosário ao homem negro, que passou a usá-lo todos os dias e nunca mais deixou de rezá-lo.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.