domingo, 19 de janeiro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Cantai ao Senhor Deus um canto novo, manifestai os seus prodígios entre os povos!' (Sl 95)

Primeira Leitura (Is 62,1-5) - Segunda Leitura (1Cor 12,4-11) -  Evangelho (Jo 2,1-11)

  19/01/2025 - SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM 

FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER 


Neste segundo domingo do tempo comum, estamos com Jesus e Maria nas bodas de Caná. Não sabemos detalhes do evento, os nomes dos noivos ou do mestre de cerimônia, o tempo da celebração. Mas a presença de Jesus e de Maria naquela ocasião em Caná da Galileia são o testemunho vivo da santidade e das graças associadas àquela união matrimonial. Muitos teólogos manifestam inclusive que foi, neste enlace de santa vocação e harmonia, que Jesus elevou o casamento à condição de sacramento, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.

E o vinho veio a faltar. Nossa Senhora tem a clara percepção da situação constrangedora e aflitiva dos noivos e de suas famílias, porque faltou o vinho. É a Mãe que roga, que intercede, que suplica ao Filho Amado: 'Eles não têm mais vinho' (Jo 2, 3). Medianeira e intercessora de nossas aflições e angústias, de Caná até os confins da terra, Nossa Senhora leva a Jesus as súplicas de todos os seus filhos e filhas de todos os tempos. É ela que nos abre as portas da manifestação da glória de Jesus para a definitiva aliança dos céus com a humanidade pecadora, mediante a sua súplica de Mãe face à angústia humana: 'Fazei tudo o que Ele vos disser' (Jo 2,5).

E eis que havia ali seis talhas de pedra, que foram 'enchidas até a boca' (Jo 2,7). E a água se fez vinho, nas mãos do Salvador. Da angústia, faz-se a alegria; da aflição, tem-se o júbilo; da ansiedade, nasce o alívio e a serenidade. Alegria, júbilo, alívio e serenidade que são os doces frutos da plena santificação. Este vinho nos traz a libertação do pecado e nos coloca nas sendas do céu, pois nos deleita com as graças da virtude, do santo juízo, da sabedoria de Deus. Mas nos cabe encher nossas talhas de água até a boca, prover os nossos corações do mais pleno amor humano, para que a santificação de nossas almas seja completa no coração de Deus.

'Este foi o o início dos sinais de Jesus' (Jo 2,11). Em Caná da Galileia e por Maria, mais que o primeiro milagre, a glória de Jesus foi manifesta à humanidade pecadora. O firme propósito pessoal em busca da virtude e da superação das nossas vicissitudes humanas é a água que será transformada no vinho pela graça e pela misericórdia de Deus em nossos corações aflitos e inquietos, enquanto não repousados na glória eterna. Enchei, portanto, as vossas talhas de água e fazei tudo o que Ele vos disser, com a intercessão de Maria. Eis aí a pequena e a grande via em direção ao Coração de Deus, que nos foi legada um dia em Caná da Galileia.

sábado, 18 de janeiro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XVI)


69. A verdadeira razão pela qual Deus concede tantas graças aos humildes é que os humildes são fiéis a essas graças e fazem bom uso delas. Eles as recebem de Deus e as utilizam de maneira agradável a Ele, dando toda a glória a Deus sem reter nada para si mesmos. Isso é como o mordomo fiel que não se apropria de nada que pertença ao seu mestre; e assim merece o louvor e a recompensa dados ao servo fiel mencionado no Evangelho: 'Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito' [Mt 25,21].

Ó minha alma, como te colocas em relação a esta fidelidade para com Deus? Não és como aqueles servos a quem o mestre diariamente confia dinheiro para comprar uma coisa, agora outra, e que cada vez retêm uma pequena moeda para si mesmos, até que, pouco a pouco, tornam-se servos infiéis e grandes ladrões? De igual forma, o nosso orgulho nos torna servos infiéis quando atribuímos a nós mesmos o louvor que é devido apenas a um dom que nos foi confiado por Deus e que deve ser atribuído incondicionalmente a Ele.

Ó Senhor, embora vedes todos os meus furtos, fico maravilhado de que ainda confieis em mim! Considerando minha infidelidade, não sou digno da menor graça, mas fazei-me humilde e eu também serei fiel. É certamente verdade que quem é humilde também é fiel a Deus; porque o homem humilde também é justo em dar a todos o que lhes é devido, e acima de tudo, em render a Deus as coisas que são de Deus, ou seja, em dar-lhe a glória por todo o bem que ele é, todo o bem que tem e por todo o bem que faz; como diz o Venerável Beda: 'Todo o bem que vemos em nós devemos atribuí-lo a Deus e não a nós mesmos' [apud D. Th. in Cat. to 5]. 

70. Agradecer a Deus por todas as bênçãos que recebemos e continuamos a receber é um excelente meio de exercitar a humildade porque, pelo agradecimento, aprendemos a reconhecer o Supremo Doador de todo bem: e por isso é necessário que estejamos sempre humildes diante de Deus. São Paulo nos exorta a render graças por todas as coisas e em todos os tempos: 'Em tudo dai graças' [1 Ts 5,18] e 'dando graças sempre por tudo' [Ef 5, 20]. Mas para que nosso agradecimento seja um ato de humildade, não deve apenas vir dos lábios, mas do coração, com uma firme convicção de que todo o bem nos chega pela infinita misericórdia de Deus. 

Olha para um mendigo que recebeu um considerável presente de um homem rico, com que calor ele deve expressar a sua gratidão! Ele está espantado de que o homem rico tenha se dignado a lhe conceder um presente, protestando que não é digno disso, e que o recebe, não por seu mérito, mas pela nobre bondade do doador, a quem sempre será eternamente grato. Ele fala com o coração porque conhece sua própria miserável condição de pobreza e a benigna condescendência do homem rico. E não deve nosso agradecimento a Deus ser menos do que o agradecimento que se dá de homem para homem? Quando um homem pode assim agradecer outro, não devemos nos envergonhar de que haja homens que sintam mais humildade de coração em relação aos seus semelhantes do que nós em relação a Deus?

Ó meu Deus, agradeço-vos de todo o meu coração por estas bênçãos que recebi somente por vossa bondade, que não mereci e pelas quais nunca vos dei graças até agora! Foi por orgulho que deixei de vos dar as graças que vos são devidas, e é por orgulho que desfrutei de todos os vossos dons como se não os tivesse recebido de vossas mãos. Detesto o meu orgulho, e com a vossa ajuda, lembrarei de vos dar graças sempre e por tudo: 'Bendirei ao Senhor em todo o tempo' [Sl 33,1]; louvar, bendizer e agradecer-vos por todas as vossas misericórdias para todo o sempre: 'As misericórdias do Senhor cantarei para sempre' [Sl 88,1].

71. O ponto importante é que o nosso coração seja humilde, porque é isso que Cristo busca em nós acima de todas as coisas. É inútil consertar a armação e os ponteiros de um relógio, a menos que também ajustemos as engrenagens e os mecanismos, e da mesma forma é inútil, para qualquer um ser modesto na vestimenta e na postura, se não houver verdadeira humildade no coração. Devemos aplicar os ensinamentos de nosso Salvador a nós mesmos: 'Tu, fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que o exterior também se torne limpo' [Mt 23,26] e aprender com o ensino de São Tomás que 'da nossa disposição interior de humildade procedem sinais em palavras, atos e maneira, pelos quais se manifesta externamente o que está no nosso interior' [2a 2æ, qu. clxi, art. 6].

Admiro a verdade do que tantas vezes se repete nas Sagradas Escrituras, que a humildade é um dom especial de Deus, e que ninguém pode possuí-la por si mesmo, 'a menos que Deus a conceda' [Sb 8,21] mas no tribunal de Deus não haverá desculpas para nós por não termos possuído a humildade, pois nos foi ensinado que poderíamos obtê-la por meio de oração perseverante e, se não usarmos esse meio para obtê-la, será nossa culpa por não termos pedido a Deus por ela, e portanto nossa culpa por não a termos obtido. Nosso Salvador em seu Evangelho diz: 'Pedi e recebereis' [Jo 16,24]. Se desejais algo de Mim, pedi e sereis ouvidos. E pode essa virtude nos custar menos do que o simples esforço de pedi-la a Deus com grande insistência? Portanto, não devemos cessar de pedi-la e, pelo próprio método de obtê-la, nossos corações, nossos olhares, nossas palavras, nossos movimentos, nossa postura e até mesmo nossos pensamentos serão humildes: 'Porque é do coração que saem os pensamentos' [Mt 15,19].

72. Muitas vezes lamentamos não conseguir orar devido às muitas distrações que dificultam nosso recolhimento e secam a fonte de devoção em nossos corações, mas nisso erramos e não sabemos o que estamos dizendo. A melhor oração não é aquela em que estamos mais recolhidos e fervorosos, mas aquela em que somos mais humildes, porque está escrito: 'A oração daquele que se humilha penetrará as nuvens' [Eclo 35,21]. E que distrações de mente e coração podem impedir o exercício da humildade? É precisamente nesses momentos em que nos sentimos irritados e mornos que devemos mostrar nossa humildade. E como? Dizendo: 'Ó Senhor, não sou digno de permanecer aqui falando contigo tão confidencialmente, não mereço a graça da oração, pois é um dom especial que Vós concedestes àqueles que são caros a Vós. Basta-me ser vosso servo, afastando minhas distrações como se afastam as moscas. Pois as moscas não voam em torno da água fervente, mas apenas em torno da água morna, e todas essas distrações surgem da minha grande tibieza. 

Que oração excelente seria essa! Assim orou Josué, e o Senhor ouviu sua oração: 'Tu te humilhaste diante de Deus; e eu também te ouvi, diz o Senhor' [2Cr 34,27]. Assim orou o Rei Davi também na angústia de sua alma e foi livrado: 'Eu me humilhei e Ele me livrou' [Sl 114,6]. Quanto mais a alma se exalta e se deleita em sua própria meditação, mais Deus se exalta acima dessa alma e se mantém distante dela. 'O homem virá de todo coração e haveis de me encontrar' [Jr 29,13]. Desejamos que Deus, em sua misericórdia, se aproxime de nós? Humilhemos-nos. 'Queres que Deus se aproxime de ti?' - diz Santo Agostinho - 'humilha-te, pois quanto mais te elevas, mais Ele estará acima de ti' [Enarr. in Ps. cxli].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

BREVIÁRIO DIGITAL - ICONOGRAFIA CRISTÃ (I)


Ícone de Maria, a Theotokos ('Mãe de Deus' ou literalmente 'Portadora de Deus'). Maria é mostrada em trajes típicos das mulheres judias à época, em cor vermelha, a cor da divindade, segurando o Menino Jesus. A palavra em grego sobre seu ombro direito a identifica como 'guia'. Seu olhar é dirigido a nós, pobres pecadores, mas sua mão direita nos guia em direção ao seu Filho Jesus Cristo (identificado pelas letras IC XC), fonte de todas as graças, que nos abençoa com a mão direita e que, com a mão esquerda, segura um pergaminho, símbolo da sabedoria divina.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

GUARDAI EM VÓS O SANTO TEMOR DE DEUS!

'Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência, dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça.

Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo cadinho da humilhação.

Põe tua confiança em Deus e ele te salvará; orienta bem o teu caminho e espera nele. Conserva o temor dele até na velhice.

Vós, que temeis o Senhor, esperai em sua misericórdia, não vos afasteis dele, para que não caiais; vós, que temeis o Senhor, tende confiança nele, a fim de que não se desvaneça vossa recompensa.

Vós, que temeis o Senhor, esperai nele; sua misericórdia vos será fonte de alegria. Vós, que temeis o Senhor, amai-o, e vossos corações se encherão de luz.

Considerai, meus filhos, as gerações humanas: sabei que nenhum daqueles que confiavam no Senhor foi confundido. Pois quem foi abandonado após ter perseverado em seus mandamentos? Quem é aquele cuja oração foi desprezada? Pois Deus é cheio de bondade e de misericórdia, ele perdoa os pecados no dia da aflição. Ele é o protetor de todos os que verdadeiramente o procuram. 

Ai do coração fingido, dos lábios perversos, das mãos malfazejas, do pecador que leva na terra uma vida de duplicidade; ai dos corações tímidos que não confiam em Deus, e que Deus, por essa razão, não protege; ai daqueles que perderam a paciência, que saíram do caminho reto, e se transviaram nos maus caminhos.

Que farão eles quando o Senhor começar o exame? Aqueles que temem o Senhor não são incrédulos à sua palavra, e os que o amam permanecem em sua vereda. Aqueles que temem o Senhor procuram agradar-lhe, aqueles que o amam satisfazem-se na sua Lei. Aqueles que temem o Senhor preparam o coração, santificam suas almas na presença dele.

Aqueles que temem o Senhor guardam os seus mandamentos, têm paciência até que ele lance os olhos sobre eles, dizendo: Se não fizermos penitência, cairemos nas mãos do Senhor, e não nas mãos dos homens, pois a misericórdia dele está na medida de sua grandeza'.

(Eclesástico, 2)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Quem não reconhecerá que justamente nós afirmamos que Maria, assídua companheira de Jesus, desde a casa de Nazaré até ao Calvário, iniciada mais do que qualquer outro nos segredos do seu Coração, dispensadora, por direito de Mãe, de todos os tesouros dos seus méritos, é por tudo isso ajuda ainda mais segura e eficaz para chegar ao conhecimento e amor de Cristo? Prova evidente disso, nos dão infelizmente, com sua conduta deplorável, aqueles homens que, seduzidos pelos artifícios do demônio ou enganados por falsas doutrinas,creem poder dispensar o socorro da Virgem. Miseráveis e infelizes, transcuram Maria com a desculpa de renderem honra somente a Cristo! Ignoram que não se pode encontrar o Menino senão por Maria, sua Mãe'.  

(São Pio X)

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIV)


Capítulo XCIV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - São Tomás de Aquino, sua Irmã e a Aparição do Irmão Romano - O Arcipreste Ponzoni e Dom Alfonso Sánchez - Santa Margarida Maria e a Incredulidade de Madre Greffier 

O Doutor Angélico - Santo Tomás de Aquino - era também muito devoto das almas sofredoras, que lhe apareceram várias vezes, como ele próprio testemunhou. Ele oferecia suas orações e sacrifícios a Deus especialmente pelas almas dos falecidos que ele conhecera ou com quem tinha parentesco. Quando era professor de Teologia na Universidade de Paris, perdeu uma irmã que faleceu em Cápua, no convento de Santa Maria, do qual era abadessa. Assim que soube de sua morte, recomendou fervorosamente sua alma a Deus. Dias depois, ela lhe apareceu, suplicando que tivesse piedade dela e intensificasse as suas súplicas, pois sofria cruelmente nas chamas da outra vida. Tomás apressou-se em oferecer todas as satisfações possíveis por ela e solicitou também as orações de vários amigos. Assim, obteve a libertação de sua irmã, que veio pessoalmente anunciar-lhe a boa nova.

Algum tempo depois, tendo sido enviado a Roma por seus superiores, a alma de sua irmã manifestou-se a ele em toda a glória de uma alegria triunfante. Ela disse que suas orações foram ouvidas, que estava livre do sofrimento e prestes a gozar do repouso eterno no seio de Deus. Familiarizado com essas comunicações sobrenaturais, o santo não hesitou em interrogar a aparição, perguntando sobre o destino de seus dois irmãos, Arnoldo e Landolfo, que haviam falecido anteriormente. 'Arnoldo está no Céu' -respondeu a alma - 'e goza de um alto grau de glória por ter defendido a Igreja e o Sumo Pontífice contra as agressões do imperador Frederico. Quanto a Landolfo, ele ainda está no Purgatório, onde sofre muito e precisa de assistência. Quanto a você, meu querido irmão' - acrescentou - 'um lugar magnífico o aguarda no Paraíso, em recompensa por tudo o que você fez pela Igreja. Apresse-se em concluir as obras que iniciou, pois em breve você se unirá a nós'. A história conta que, de fato, ele viveu apenas por um curto período após esse evento.

Em outra ocasião, o mesmo santo, estando em oração na Igreja de São Domingos, em Nápoles, viu aproximar-se o Irmão Romano, que o sucedera em Paris na cadeira de teologia. O santo pensou inicialmente que ele tinha acabado de chegar de Paris, pois ignorava a sua morte. Assim, levantou-se, foi ao seu encontro, saudou-o e perguntou sobre sua saúde e o motivo da viagem. ''Não pertenço mais a este mundo' - disse o religioso com um sorriso - 'e, pela misericórdia de Deus, já desfruto da bem-aventurança eterna. Venho por ordem de Deus encorajá-lo em seus trabalhos'. 'Estou em estado de graça?' - perguntou imediatamente Tomás. 'Sim, querido irmão, e suas obras são muito agradáveis a Deus'. 'E você, teve que sofrer no Purgatório?' 'Sim, por quatorze dias, devido a pequenas infidelidades que não expiei suficientemente na Terra'. Então Tomás, cuja mente estava constantemente ocupada com questões teológicas, aproveitou a oportunidade para tentar penetrar o mistério da visão beatífica; mas recebeu como resposta este versículo do Salmo 47: Sicut audivimus, sic vidimus in civitate Dei nostri – Como aprendemos pela fé, vimos com nossos olhos a cidade do nosso Deus'. Dizendo essas palavras, a aparição desapareceu, deixando o Doutor Angélico inflamado pelo desejo do Bem Eterno.

Mais recentemente, no século XVI, um favor semelhante, mas talvez mais maravilhoso, foi concedido a um zelador das almas do Purgatório, amigo íntimo de São Carlos Borromeu. O Venerável Gratien Ponzoni, arcipreste [decano] de Arona, dedicou sua vida às almas sofredoras. Durante a peste que vitimou tantas pessoas na diocese de Milão, Ponzoni, além de ministrar os sacramentos aos doentes, não hesitou em assumir o papel de coveiro, enterrando os mortos, pois o medo havia paralisado a coragem de todos. Com zelo e caridade verdadeiramente apostólicos, ajudou muitas vítimas em seus últimos momentos e enterrou-as no cemitério próximo à sua igreja de Santa Maria.

Certo dia, após o Ofício de Vésperas, ao passar pelo cemitério com Dom Alfonso Sánchez, governador de Arona, Ponzoni parou, impressionado por uma visão extraordinária. Temendo uma ilusão, perguntou ao governador: 'Senhor, você vê o mesmo espetáculo que eu?' 'Sim' - respondeu o governador - 'vejo uma procissão de mortos avançando de seus túmulos para a igreja; e confesso que, até você falar, não acreditava em meus olhos'. Convencido da realidade da aparição, o arcipreste concluiu: 'Provavelmente são vítimas recentes da peste, que querem manifestar sua necessidade de orações'” Ele imediatamente ordenou que os sinos tocassem e convidou os paroquianos para um serviço solene pelos mortos no dia seguinte.

Essas aparições, atestadas por testemunhas confiáveis e santos como Tomás de Aquino, demonstram a importância de orações pelas almas do Purgatório. Ainda hoje, devemos ser prudentes, mas também abertos à fé, evitando incredulidade excessiva, especialmente quando se trata da glória de Deus e do bem do próximo.

Vemos aqui duas pessoas cujo bom senso as protegeu contra qualquer perigo de ilusão e que, ambas impressionadas ao mesmo tempo ao verem a mesma aparição, hesitaram em acreditar nela até estarem convencidas de que seus olhos estavam testemunhando o mesmo fenômeno. Não há o menor espaço para alucinação, e qualquer pessoa sensata deve admitir a realidade de um acontecimento sobrenatural, atestado por tais testemunhas. Também não podemos questionar essas aparições baseadas no testemunho de um Santo Tomás de Aquino, como relatado acima. Devemos evitar rejeitar com demasiada facilidade outros fatos da mesma natureza, desde que sejam atestados por pessoas de santidade reconhecida e verdadeiramente dignas de crédito. Certamente, é necessário sermos prudentes, mas nossa prudência deve ser cristã, igualmente distante da credulidade e daquele espírito orgulhoso e pretensioso com o qual, como já observamos, Jesus repreendeu seus Apóstolos: Noli esse incredulus, sed fidelis – 'Não sejas incrédulo, mas crente' (Jo 20,27).

Monsenhor Languet, Bispo de Soissons, faz a mesma observação em referência a uma circunstância que ele relata na vida da Beata Margarida Maria Alacoque. Madame Billet, esposa do médico da casa – isto é, do convento de Paray, onde residia a bem-aventurada irmã – acabara de falecer. A alma da falecida apareceu à serva de Deus, pedindo suas orações e encarregando-a de alertar o marido sobre dois assuntos secretos relacionados à sua salvação. A santa irmã relatou o ocorrido à sua superiora, Madre Greffier. A superiora ridicularizou a visão e também a quem a relatou; impôs silêncio a Margarida, proibindo-a de dizer ou fazer qualquer coisa relacionada ao que lhe fora solicitado.

A humilde religiosa obedeceu com simplicidade e, com a mesma simplicidade, relatou à Madre Greffier a segunda solicitação que recebeu da falecida alguns dias depois; mas a superiora tratou isso com o mesmo desprezo. No entanto, na noite seguinte, foi despertada por um barulho tão terrível em seu quarto que pensou que morreria de susto. Chamou as irmãs e, quando vieram ajudá-la, ela estava a ponto de desmaiar. Quando se recuperou um pouco, culpou-se por sua incredulidade e não demorou a informar o médico sobre o que havia sido revelado à irmã Margarida. O médico reconheceu o aviso como vindo de Deus e aproveitou-o. Quanto à Madre Greffier, aprendeu pela experiência que, embora a desconfiança seja geralmente a política mais sábia, às vezes é errado levá-la longe demais, especialmente quando estão em jogo a glória de Deus e o bem do próximo.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

ONDE NÃO HÁ ÓDIO À HERESIA, NÃO HÁ SANTIDADE

Se odiássemos o pecado, como deveríamos odiá-lo, de forma pura, intensa e corajosa, deveríamos fazer mais penitência, deveríamos impor mais auto-punição em nossas atitudes, deveríamos lamentar nossos pecados de forma mais duradoura. Por fim, a maior deslealdade a Deus é a heresia. É o pecado dos pecados, a coisa mais abominável que Deus olha com desprezo neste mundo maligno. 

No entanto, quão pouco entendemos a sua excessiva repugnância! É a poluição da verdade de Deus, que é a pior de todas as impurezas. No entanto, como a tratamos com indiferença! Olhamos para ela e permanecemos calmos. A tocamos e nem sequer estremecemos. Nos misturamos com ela e isso não nos causa receio. Vemos a heresia tocar coisas sagradas e não sentimos nenhum senso de sacrilégio. Respiramos seu odor e não demonstramos sinais de detestação ou repugnância. Alguns de nós fingem ser seus amigos; e alguns até atenuam sua culpa. Não amamos a Deus o suficiente para ficarmos irados por sua glória. Não amamos os homens o suficiente para sermos caridosamente verdadeiros para com suas almas. 

Tendo perdido o tato, o gosto, a visão e todo o senso de espiritualidade celestial, conseguimos habitar no meio desta praga odiosa, com uma tranquilidade imperturbável, reconciliados com sua imundície, não sem algumas concessões arrogantes de liberal admiração, talvez até com uma exibição solícita de simpatias tolerantes. Por que estamos tão abaixo dos antigos santos, e até dos modernos apóstolos destes tempos mais recentes, na abundância das nossas conversões? Porque não temos a severidade antiga. Precisamos do espírito antigo da Igreja, da antiga mentalidade eclesiástica. 

Nossa caridade é falsa, porque não é severa; e é ineficaz porque é falsa. Nos falta devoção à verdade como verdade, como a verdade de Deus. Nosso zelo pelas almas é insignificante, porque não temos zelo pela honra de Deus. Agimos como se Deus fosse elogiado pelas conversões, em vez de as ver como almas salvas por um ato de misericórdia. Dizemos às pessoas metade da verdade, a metade que mais se adapta à nossa pusilanimidade e ao seu orgulho; e então nos perguntamos por que tão poucos se convertem e, porque entre tão poucos, tantos apostatam. Somos tão fracos que nos surpreendemos que nossa meia-verdade não tenha tido o sucesso da verdade inteira de Deus. Onde não há ódio à heresia, não há santidade. Um homem, que poderia ser um apóstolo, torna-se um câncer na Igreja pela falta dessa justa abominação.

(Excertos traduzidos da obra 'The Precious Blood', do Pe. F.W. Faber)