69. A verdadeira razão pela qual Deus concede tantas graças aos humildes é que os humildes são fiéis a essas graças e fazem bom uso delas. Eles as recebem de Deus e as utilizam de maneira agradável a Ele, dando toda a glória a Deus sem reter nada para si mesmos. Isso é como o mordomo fiel que não se apropria de nada que pertença ao seu mestre; e assim merece o louvor e a recompensa dados ao servo fiel mencionado no Evangelho: 'Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito' [Mt 25,21].
Ó minha alma, como te colocas em relação a esta fidelidade para com Deus? Não és como aqueles servos a quem o mestre diariamente confia dinheiro para comprar uma coisa, agora outra, e que cada vez retêm uma pequena moeda para si mesmos, até que, pouco a pouco, tornam-se servos infiéis e grandes ladrões? De igual forma, o nosso orgulho nos torna servos infiéis quando atribuímos a nós mesmos o louvor que é devido apenas a um dom que nos foi confiado por Deus e que deve ser atribuído incondicionalmente a Ele.
Ó Senhor, embora vedes todos os meus furtos, fico maravilhado de que ainda confieis em mim! Considerando minha infidelidade, não sou digno da menor graça, mas fazei-me humilde e eu também serei fiel. É certamente verdade que quem é humilde também é fiel a Deus; porque o homem humilde também é justo em dar a todos o que lhes é devido, e acima de tudo, em render a Deus as coisas que são de Deus, ou seja, em dar-lhe a glória por todo o bem que ele é, todo o bem que tem e por todo o bem que faz; como diz o Venerável Beda: 'Todo o bem que vemos em nós devemos atribuí-lo a Deus e não a nós mesmos' [apud D. Th. in Cat. to 5].
70. Agradecer a Deus por todas as bênçãos que recebemos e continuamos a receber é um excelente meio de exercitar a humildade porque, pelo agradecimento, aprendemos a reconhecer o Supremo Doador de todo bem: e por isso é necessário que estejamos sempre humildes diante de Deus. São Paulo nos exorta a render graças por todas as coisas e em todos os tempos: 'Em tudo dai graças' [1 Ts 5,18] e 'dando graças sempre por tudo' [Ef 5, 20]. Mas para que nosso agradecimento seja um ato de humildade, não deve apenas vir dos lábios, mas do coração, com uma firme convicção de que todo o bem nos chega pela infinita misericórdia de Deus.
Olha para um mendigo que recebeu um considerável presente de um homem rico, com que calor ele deve expressar a sua gratidão! Ele está espantado de que o homem rico tenha se dignado a lhe conceder um presente, protestando que não é digno disso, e que o recebe, não por seu mérito, mas pela nobre bondade do doador, a quem sempre será eternamente grato. Ele fala com o coração porque conhece sua própria miserável condição de pobreza e a benigna condescendência do homem rico. E não deve nosso agradecimento a Deus ser menos do que o agradecimento que se dá de homem para homem? Quando um homem pode assim agradecer outro, não devemos nos envergonhar de que haja homens que sintam mais humildade de coração em relação aos seus semelhantes do que nós em relação a Deus?
Ó meu Deus, agradeço-vos de todo o meu coração por estas bênçãos que recebi somente por vossa bondade, que não mereci e pelas quais nunca vos dei graças até agora! Foi por orgulho que deixei de vos dar as graças que vos são devidas, e é por orgulho que desfrutei de todos os vossos dons como se não os tivesse recebido de vossas mãos. Detesto o meu orgulho, e com a vossa ajuda, lembrarei de vos dar graças sempre e por tudo: 'Bendirei ao Senhor em todo o tempo' [Sl 33,1]; louvar, bendizer e agradecer-vos por todas as vossas misericórdias para todo o sempre: 'As misericórdias do Senhor cantarei para sempre' [Sl 88,1].
71. O ponto importante é que o nosso coração seja humilde, porque é isso que Cristo busca em nós acima de todas as coisas. É inútil consertar a armação e os ponteiros de um relógio, a menos que também ajustemos as engrenagens e os mecanismos, e da mesma forma é inútil, para qualquer um ser modesto na vestimenta e na postura, se não houver verdadeira humildade no coração. Devemos aplicar os ensinamentos de nosso Salvador a nós mesmos: 'Tu, fariseu cego, limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que o exterior também se torne limpo' [Mt 23,26] e aprender com o ensino de São Tomás que 'da nossa disposição interior de humildade procedem sinais em palavras, atos e maneira, pelos quais se manifesta externamente o que está no nosso interior' [2a 2æ, qu. clxi, art. 6].
Admiro a verdade do que tantas vezes se repete nas Sagradas Escrituras, que a humildade é um dom especial de Deus, e que ninguém pode possuí-la por si mesmo, 'a menos que Deus a conceda' [Sb 8,21] mas no tribunal de Deus não haverá desculpas para nós por não termos possuído a humildade, pois nos foi ensinado que poderíamos obtê-la por meio de oração perseverante e, se não usarmos esse meio para obtê-la, será nossa culpa por não termos pedido a Deus por ela, e portanto nossa culpa por não a termos obtido. Nosso Salvador em seu Evangelho diz: 'Pedi e recebereis' [Jo 16,24]. Se desejais algo de Mim, pedi e sereis ouvidos. E pode essa virtude nos custar menos do que o simples esforço de pedi-la a Deus com grande insistência? Portanto, não devemos cessar de pedi-la e, pelo próprio método de obtê-la, nossos corações, nossos olhares, nossas palavras, nossos movimentos, nossa postura e até mesmo nossos pensamentos serão humildes: 'Porque é do coração que saem os pensamentos' [Mt 15,19].
72. Muitas vezes lamentamos não conseguir orar devido às muitas distrações que dificultam nosso recolhimento e secam a fonte de devoção em nossos corações, mas nisso erramos e não sabemos o que estamos dizendo. A melhor oração não é aquela em que estamos mais recolhidos e fervorosos, mas aquela em que somos mais humildes, porque está escrito: 'A oração daquele que se humilha penetrará as nuvens' [Eclo 35,21]. E que distrações de mente e coração podem impedir o exercício da humildade? É precisamente nesses momentos em que nos sentimos irritados e mornos que devemos mostrar nossa humildade. E como? Dizendo: 'Ó Senhor, não sou digno de permanecer aqui falando contigo tão confidencialmente, não mereço a graça da oração, pois é um dom especial que Vós concedestes àqueles que são caros a Vós. Basta-me ser vosso servo, afastando minhas distrações como se afastam as moscas. Pois as moscas não voam em torno da água fervente, mas apenas em torno da água morna, e todas essas distrações surgem da minha grande tibieza.
Que oração excelente seria essa! Assim orou Josué, e o Senhor ouviu sua oração: 'Tu te humilhaste diante de Deus; e eu também te ouvi, diz o Senhor' [2Cr 34,27]. Assim orou o Rei Davi também na angústia de sua alma e foi livrado: 'Eu me humilhei e Ele me livrou' [Sl 114,6]. Quanto mais a alma se exalta e se deleita em sua própria meditação, mais Deus se exalta acima dessa alma e se mantém distante dela. 'O homem virá de todo coração e haveis de me encontrar' [Jr 29,13]. Desejamos que Deus, em sua misericórdia, se aproxime de nós? Humilhemos-nos. 'Queres que Deus se aproxime de ti?' - diz Santo Agostinho - 'humilha-te, pois quanto mais te elevas, mais Ele estará acima de ti' [Enarr. in Ps. cxli].
('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)