terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIV)


Capítulo XCIV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - São Tomás de Aquino, sua Irmã e a Aparição do Irmão Romano - O Arcipreste Ponzoni e Dom Alfonso Sánchez - Santa Margarida Maria e a Incredulidade de Madre Greffier 

O Doutor Angélico - Santo Tomás de Aquino - era também muito devoto das almas sofredoras, que lhe apareceram várias vezes, como ele próprio testemunhou. Ele oferecia suas orações e sacrifícios a Deus especialmente pelas almas dos falecidos que ele conhecera ou com quem tinha parentesco. Quando era professor de Teologia na Universidade de Paris, perdeu uma irmã que faleceu em Cápua, no convento de Santa Maria, do qual era abadessa. Assim que soube de sua morte, recomendou fervorosamente sua alma a Deus. Dias depois, ela lhe apareceu, suplicando que tivesse piedade dela e intensificasse as suas súplicas, pois sofria cruelmente nas chamas da outra vida. Tomás apressou-se em oferecer todas as satisfações possíveis por ela e solicitou também as orações de vários amigos. Assim, obteve a libertação de sua irmã, que veio pessoalmente anunciar-lhe a boa nova.

Algum tempo depois, tendo sido enviado a Roma por seus superiores, a alma de sua irmã manifestou-se a ele em toda a glória de uma alegria triunfante. Ela disse que suas orações foram ouvidas, que estava livre do sofrimento e prestes a gozar do repouso eterno no seio de Deus. Familiarizado com essas comunicações sobrenaturais, o santo não hesitou em interrogar a aparição, perguntando sobre o destino de seus dois irmãos, Arnoldo e Landolfo, que haviam falecido anteriormente. 'Arnoldo está no Céu' -respondeu a alma - 'e goza de um alto grau de glória por ter defendido a Igreja e o Sumo Pontífice contra as agressões do imperador Frederico. Quanto a Landolfo, ele ainda está no Purgatório, onde sofre muito e precisa de assistência. Quanto a você, meu querido irmão' - acrescentou - 'um lugar magnífico o aguarda no Paraíso, em recompensa por tudo o que você fez pela Igreja. Apresse-se em concluir as obras que iniciou, pois em breve você se unirá a nós'. A história conta que, de fato, ele viveu apenas por um curto período após esse evento.

Em outra ocasião, o mesmo santo, estando em oração na Igreja de São Domingos, em Nápoles, viu aproximar-se o Irmão Romano, que o sucedera em Paris na cadeira de teologia. O santo pensou inicialmente que ele tinha acabado de chegar de Paris, pois ignorava a sua morte. Assim, levantou-se, foi ao seu encontro, saudou-o e perguntou sobre sua saúde e o motivo da viagem. ''Não pertenço mais a este mundo' - disse o religioso com um sorriso - 'e, pela misericórdia de Deus, já desfruto da bem-aventurança eterna. Venho por ordem de Deus encorajá-lo em seus trabalhos'. 'Estou em estado de graça?' - perguntou imediatamente Tomás. 'Sim, querido irmão, e suas obras são muito agradáveis a Deus'. 'E você, teve que sofrer no Purgatório?' 'Sim, por quatorze dias, devido a pequenas infidelidades que não expiei suficientemente na Terra'. Então Tomás, cuja mente estava constantemente ocupada com questões teológicas, aproveitou a oportunidade para tentar penetrar o mistério da visão beatífica; mas recebeu como resposta este versículo do Salmo 47: Sicut audivimus, sic vidimus in civitate Dei nostri – Como aprendemos pela fé, vimos com nossos olhos a cidade do nosso Deus'. Dizendo essas palavras, a aparição desapareceu, deixando o Doutor Angélico inflamado pelo desejo do Bem Eterno.

Mais recentemente, no século XVI, um favor semelhante, mas talvez mais maravilhoso, foi concedido a um zelador das almas do Purgatório, amigo íntimo de São Carlos Borromeu. O Venerável Gratien Ponzoni, arcipreste [decano] de Arona, dedicou sua vida às almas sofredoras. Durante a peste que vitimou tantas pessoas na diocese de Milão, Ponzoni, além de ministrar os sacramentos aos doentes, não hesitou em assumir o papel de coveiro, enterrando os mortos, pois o medo havia paralisado a coragem de todos. Com zelo e caridade verdadeiramente apostólicos, ajudou muitas vítimas em seus últimos momentos e enterrou-as no cemitério próximo à sua igreja de Santa Maria.

Certo dia, após o Ofício de Vésperas, ao passar pelo cemitério com Dom Alfonso Sánchez, governador de Arona, Ponzoni parou, impressionado por uma visão extraordinária. Temendo uma ilusão, perguntou ao governador: 'Senhor, você vê o mesmo espetáculo que eu?' 'Sim' - respondeu o governador - 'vejo uma procissão de mortos avançando de seus túmulos para a igreja; e confesso que, até você falar, não acreditava em meus olhos'. Convencido da realidade da aparição, o arcipreste concluiu: 'Provavelmente são vítimas recentes da peste, que querem manifestar sua necessidade de orações'” Ele imediatamente ordenou que os sinos tocassem e convidou os paroquianos para um serviço solene pelos mortos no dia seguinte.

Essas aparições, atestadas por testemunhas confiáveis e santos como Tomás de Aquino, demonstram a importância de orações pelas almas do Purgatório. Ainda hoje, devemos ser prudentes, mas também abertos à fé, evitando incredulidade excessiva, especialmente quando se trata da glória de Deus e do bem do próximo.

Vemos aqui duas pessoas cujo bom senso as protegeu contra qualquer perigo de ilusão e que, ambas impressionadas ao mesmo tempo ao verem a mesma aparição, hesitaram em acreditar nela até estarem convencidas de que seus olhos estavam testemunhando o mesmo fenômeno. Não há o menor espaço para alucinação, e qualquer pessoa sensata deve admitir a realidade de um acontecimento sobrenatural, atestado por tais testemunhas. Também não podemos questionar essas aparições baseadas no testemunho de um Santo Tomás de Aquino, como relatado acima. Devemos evitar rejeitar com demasiada facilidade outros fatos da mesma natureza, desde que sejam atestados por pessoas de santidade reconhecida e verdadeiramente dignas de crédito. Certamente, é necessário sermos prudentes, mas nossa prudência deve ser cristã, igualmente distante da credulidade e daquele espírito orgulhoso e pretensioso com o qual, como já observamos, Jesus repreendeu seus Apóstolos: Noli esse incredulus, sed fidelis – 'Não sejas incrédulo, mas crente' (Jo 20,27).

Monsenhor Languet, Bispo de Soissons, faz a mesma observação em referência a uma circunstância que ele relata na vida da Beata Margarida Maria Alacoque. Madame Billet, esposa do médico da casa – isto é, do convento de Paray, onde residia a bem-aventurada irmã – acabara de falecer. A alma da falecida apareceu à serva de Deus, pedindo suas orações e encarregando-a de alertar o marido sobre dois assuntos secretos relacionados à sua salvação. A santa irmã relatou o ocorrido à sua superiora, Madre Greffier. A superiora ridicularizou a visão e também a quem a relatou; impôs silêncio a Margarida, proibindo-a de dizer ou fazer qualquer coisa relacionada ao que lhe fora solicitado.

A humilde religiosa obedeceu com simplicidade e, com a mesma simplicidade, relatou à Madre Greffier a segunda solicitação que recebeu da falecida alguns dias depois; mas a superiora tratou isso com o mesmo desprezo. No entanto, na noite seguinte, foi despertada por um barulho tão terrível em seu quarto que pensou que morreria de susto. Chamou as irmãs e, quando vieram ajudá-la, ela estava a ponto de desmaiar. Quando se recuperou um pouco, culpou-se por sua incredulidade e não demorou a informar o médico sobre o que havia sido revelado à irmã Margarida. O médico reconheceu o aviso como vindo de Deus e aproveitou-o. Quanto à Madre Greffier, aprendeu pela experiência que, embora a desconfiança seja geralmente a política mais sábia, às vezes é errado levá-la longe demais, especialmente quando estão em jogo a glória de Deus e o bem do próximo.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

ONDE NÃO HÁ ÓDIO À HERESIA, NÃO HÁ SANTIDADE

Se odiássemos o pecado, como deveríamos odiá-lo, de forma pura, intensa e corajosa, deveríamos fazer mais penitência, deveríamos impor mais auto-punição em nossas atitudes, deveríamos lamentar nossos pecados de forma mais duradoura. Por fim, a maior deslealdade a Deus é a heresia. É o pecado dos pecados, a coisa mais abominável que Deus olha com desprezo neste mundo maligno. 

No entanto, quão pouco entendemos a sua excessiva repugnância! É a poluição da verdade de Deus, que é a pior de todas as impurezas. No entanto, como a tratamos com indiferença! Olhamos para ela e permanecemos calmos. A tocamos e nem sequer estremecemos. Nos misturamos com ela e isso não nos causa receio. Vemos a heresia tocar coisas sagradas e não sentimos nenhum senso de sacrilégio. Respiramos seu odor e não demonstramos sinais de detestação ou repugnância. Alguns de nós fingem ser seus amigos; e alguns até atenuam sua culpa. Não amamos a Deus o suficiente para ficarmos irados por sua glória. Não amamos os homens o suficiente para sermos caridosamente verdadeiros para com suas almas. 

Tendo perdido o tato, o gosto, a visão e todo o senso de espiritualidade celestial, conseguimos habitar no meio desta praga odiosa, com uma tranquilidade imperturbável, reconciliados com sua imundície, não sem algumas concessões arrogantes de liberal admiração, talvez até com uma exibição solícita de simpatias tolerantes. Por que estamos tão abaixo dos antigos santos, e até dos modernos apóstolos destes tempos mais recentes, na abundância das nossas conversões? Porque não temos a severidade antiga. Precisamos do espírito antigo da Igreja, da antiga mentalidade eclesiástica. 

Nossa caridade é falsa, porque não é severa; e é ineficaz porque é falsa. Nos falta devoção à verdade como verdade, como a verdade de Deus. Nosso zelo pelas almas é insignificante, porque não temos zelo pela honra de Deus. Agimos como se Deus fosse elogiado pelas conversões, em vez de as ver como almas salvas por um ato de misericórdia. Dizemos às pessoas metade da verdade, a metade que mais se adapta à nossa pusilanimidade e ao seu orgulho; e então nos perguntamos por que tão poucos se convertem e, porque entre tão poucos, tantos apostatam. Somos tão fracos que nos surpreendemos que nossa meia-verdade não tenha tido o sucesso da verdade inteira de Deus. Onde não há ódio à heresia, não há santidade. Um homem, que poderia ser um apóstolo, torna-se um câncer na Igreja pela falta dessa justa abominação.

(Excertos traduzidos da obra 'The Precious Blood', do Pe. F.W. Faber)

domingo, 12 de janeiro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Que o Senhor abençoe, com a paz, o seu povo!' (Sl 28)

Primeira Leitura (Is 42,1-4.6-7) - Segunda Leitura (At 10,34-38) -  Evangelho (Lc 3,15-16.21-22)

  12/01/2025 - FESTA DO BATISMO DO SENHOR 

BATISMO DO SENHOR


No Evangelho do Batismo do Senhor, encerra-se na liturgia o tempo do Natal. João Batista, nas águas do Jordão, realizava um batismo de penitência, de ação meramente simbólica, pois não imprimia ao batizado o caráter sobrenatural e a graça santificante imposta pelo Batismo Sacramental, instituído posteriormente por Nosso Senhor Jesus Cristo: 'Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo' (Lc 3, 16).

O Batismo de Jesus constitui, ao contrário, um ato litúrgico por excelência, pois o Senhor se manifesta publicamente em sua missão salvífica. Chega ao fim o tempo dos Profetas: o Messias tão anunciado torna-se realidade diante o Precursor nas águas do Jordão. E o batismo de Jesus é um ato de extrema humildade e de misericórdia de Deus: assumindo plenamente a condição humana, Jesus quis ser batizado por João não para se purificar pois o Cordeiro sem mácula alguma não necessitava do batismo, mas para purificar a humanidade pecadora sob a herança dos pecados de Adão. Ao santificar as águas do Jordão e nelas submergir os nossos pecados, Jesus santificou todas as águas do Batismo Sacramental de todos os homens assim batizados.

Ao receber o batismo de João, Jesus rezava: 'E, enquanto rezava...' (Lc 3, 21). E, enquanto Jesus rezava, 'o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Jesus...' (Lc 3, 21-22). O Espírito Santo manifesta-se diante da oração proferida na intimidade com o Pai, sem anelos de vanglória e clamor. Oração humilde, profunda, de absoluta confiança e louvor ao Pai, que induz a primeira manifestação da Santíssima Trindade, ratificada pela pomba e pela voz que vem do Céu: 'Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer' (Lc 3, 22). No batismo do Jordão, manifesta-se em plenitude a divindade de Cristo.

Eis a síntese da nossa fé cristã, legado de Deus a toda a humanidade, sem distinção de pessoas: 'ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença' (At 10, 35). No Jordão, o céu se abriu para o Espírito Santo descer sobre a terra. No Jordão, igualmente, manifestou-se por inteiro o perdão e a misericórdia de Deus e a graça da salvação humana por meio do batismo. E, com o batismo de Jesus, tem início a vida pública do Messias preanunciado por gerações. Esta liturgia marca, portanto, o início do Tempo Comum, período em que a Igreja acompanha, a cada domingo e a cada semana, as pregações, ensinamentos e milagres de Jesus sobre a terra, o tempo em que o próprio amor de Deus habitou em nós.

sábado, 11 de janeiro de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (II)

P2 - Esses argumentos são de fato muito fortes, mas qual é o resultado de todas essas reflexões e testemunhos das Escrituras?

A consequência é autoevidente: uma vez que a salvação não pode ser alcançada em qualquer seita separada da fé da Igreja de Cristo e que ensina doutrinas falsas, a Igreja de Cristo é o único caminho designado pelo Deus Todo-Poderoso pelo qual podemos ser salvos, e fora de sua comunhão não há possibilidade ordinária de salvação.

P3 - Por que se diz 'possibilidade ordinária de salvação'? Há alguma razão para supor que Deus tenha reservado algum meio extraordinário de salvação para aqueles que não estão em comunhão com a Igreja de Cristo pela verdadeira fé?

Sem dúvida, é (absolutamente falando) possível para Deus salvar os homens por quaisquer meios que Ele desejar; e Ele poderia ter salvo toda a humanidade pelos méritos de qualquer coisa que Jesus Cristo tenha feito ou sofrido, sem exigir um sacrifício tão severo dEle como a sua morte na cruz. Mas, o que Deus pode fazer neste aspecto não é relevante para o nosso propósito; a grande questão para nós é saber o que Ele fez. Agora, como vimos antes, pelo tom geral da revelação, Deus designou a verdadeira fé em Jesus Cristo e ser membro de sua Igreja como condições para a salvação. Ele as estabeleceu como condições essenciais, de modo que ninguém será ou poderá ser salvo sem elas. 

A palavra de Deus não aponta para nenhum outro caminho possível pelo qual o homem possa ser salvo; de fato, por mais que Deus às vezes tome meios extraordinários para trazer as pessoas à sua Igreja, conforme o modo que Ele descreve em muitos dos textos citados, é impossível que Ele tenha reservado meios extraordinários de salvação para aqueles que vivem e morrem sem estar em comunhão com a Igreja de Cristo pela verdadeira fé; caso contrário, Ele se contradizeria e desmentiria as suas próprias palavras, o que é absolutamente impossível. Por exemplo, essas duas declarações expressas das Escrituras: 'O Senhor acrescentava diariamente à Igreja os que haviam de ser salvos' e 'os que estavam ordenados para a vida eterna creram', não seriam verdadeiras, se houvesse qualquer possibilidade de salvação para aqueles que não foram adicionados à Igreja ou não creram. O mesmo se aplica igualmente à maioria dos outros textos, como se verá ao analisá-los.

P.4 - Não é uma doutrina muito pouco caridosa dizer que ninguém pode ser salvo fora da Igreja ou que não crê como a Igreja crê?

Se essa doutrina fosse uma mera opinião humana ou o resultado apenas de raciocínios humanos, poderia ser vista como pouco caridosa ou de qualquer outra forma que se queira; mas é uma doutrina que não depende da razão humana. É um ponto que depende exclusivamente da vontade do Todo-Poderoso; e a única questão é saber o que Ele decidiu a respeito. Agora, toda a doutrina da sua santa Escritura, sobre este ponto, declara de forma mais clara e firme que Ele ordenou que ninguém seria salvo fora da Igreja de Cristo ou sem a verdadeira fé, e quem ousaria dizer que uma doutrina ensinada e declarada pelo grande Deus é pouco caridosa? 

Mas o erro que muitos cometem nesse ponto vem do fato de não refletirem que Deus Todo-Poderoso não está obrigado a salvar ninguém. Ele perseguiu os anjos caídos com o máximo rigor da justiça e Ele poderia justamente ter tratado o homem da mesma forma. Se, portanto, Ele se agradou de oferecer a salvação à humanidade, pelos méritos de Jesus Cristo, isso é tudo um efeito da sua infinita bondade e misericórdia; mas como Ele é o perfeito mestre dos seus próprios dons, Ele certamente tem total liberdade para exigir as condições que desejar para conceder os seus dons a nós. Agora, o todo de sua vontade revelada nos declara que Ele exige que sejamos membros da sua Igreja e que tenhamos a verdadeira fé em Jesus Cristo como condições indispensáveis para a salvação; e quem ousaria criticá-lo por fazer isso? Ou dizer que é uma opinião pouco caridosa pensar e acreditar no que Ele declarou tão expressamente e repetidamente em suas santas Escrituras?

Observe ainda que não é apenas a Igreja Católica que sustenta essa doutrina. Vimos acima que os pais e fundadores da Igreja Protestante da Escócia afirmam, em termos expressos, que 'fora da verdadeira Igreja de Cristo não há possibilidade ordinária de salvação' e a inseriram como um artigo de fé no padrão público e autêntico de sua religião, a Confissão de Fé, que todos os seus ministros devem abraçar e assinar. A Igreja da Inglaterra também, de maneira autêntica, declara, como um artigo de seu Credo, 'que, a menos que o homem mantenha a fé católica inteira e imaculada, sem dúvida perecerá eternamente'; e garante aos seus membros que esse Credo pode ser provado pelos textos mais evidentes da Sagrada Escritura, pelos quais todos os seus ministros devem assinar. Além disso, ela afirma que 'aqueles que presumem dizer que todo homem (mesmo que não esteja na verdadeira fé de Jesus Cristo) será salvo pela lei ou seita que professa' devem ser considerados malditos. Se, portanto, essa doutrina for considerada pouco caridosa, as Igrejas da Inglaterra e da Escócia devem evidentemente cair sob condenação. 

É verdade que, de fato, embora os fundadores dessas Igrejas, convencidos pelos testemunhos repetidos e evidentes da Palavra de Deus, tenham professado essa verdade e a inserido nos padrões públicos de sua religião, seus descendentes agora a negam e acusam a Igreja Católica de ser pouco caridosa por sustentá-la; mas isso só mostra sua inconsistência e prova que estão desprovidos de toda certeza no que acreditam; pois, se era uma verdade divina, quando essas religiões foram fundadas, que fora da verdadeira Igreja, e sem a fé católica, não há salvação, isso deveria ser assim ainda hoje; e se os seus primeiros fundadores estavam errados nesse ponto, que segurança podem agora ter seus seguidores em relação a qualquer outra coisa que ensinaram? Mas a Igreja Católica, sempre consistente e uniforme em sua doutrina, sempre preservando as palavras que uma vez foram colocadas em sua boca por seu Divino Mestre, em todos os tempos e em todas as idades, tem acreditado e ensinado a mesma doutrina como uma verdade revelada por Deus, de que 'fora da verdadeira Igreja de Cristo, e sem a sua verdadeira fé, não há possibilidade de salvação' e o mais autêntico testemunho público de seus inimigos prova que esta é a doutrina de Jesus e do seu santo Evangelho, seja o que for que pessoas privadas, por motivos egoístas e interessados, possam dizer em contrário. 

Tampouco ela tem medo de ser considerada pouco caridosa por causa disso. Pelo contrário, ela considera o auge da caridade alertar os homens sobre o perigo que correm, em uma questão de tamanha importância como a salvação eterna; e, com compaixão por sua situação, usa todos os meios ao seu alcance, especialmente a oração fervorosa a Deus, pela conversão de todos aqueles que estão fora do verdadeiro caminho, para que possam ser levados ao conhecimento da verdade e serem salvos. Isso é verdadeira caridade; pois a caridade é uma virtude do coração, que faz o homem amar a alma do próximo e se empenhar para promover a sua salvação; e somente a opinião que tende a excitar e promover essa disposição merece ser chamada de caridosa; enquanto o contrário, que torna o homem indiferente e negligente em relação à alma do próximo, é verdadeiramente pouco caridosao. 

É claro, portanto, que a acusação de ser pouco caridosa é uma mera distorção e calúnia, empregada para tornar a Igreja Católica e sua doutrina odiosas. Seus inimigos perceberam que a falta de caridade era um crime chocante para qualquer mente bem-disposta e que certamente causaria ódio e aversão, se fosse atribuída a ela. Eles sabiam que seus seguidores, que estavam sempre prontos para acreditar em qualquer coisa contra ela, não se esforçariam para examinar as bases dessa acusação e tomariam por garantido que ela era culpada com base em sua ousada afirmação; e o resultado confirmou sua opinião. Mas a menor atenção mostrará que sua conduta é o efeito da genuína caridade. São Paulo foi pouco caridoso quando declarou que 'nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros'... herdarão o reino de Deus'? (1Cor 6,9) ou quando ele pronunciou 'uma maldição sobre qualquer um, mesmo que fosse um anjo do céu, que pregasse qualquer outro evangelho além do que ele havia pregado' (Gl 1,8). Muito pelo contrário: isto foi a sua ardente caridade e o zelo pela salvação deles que o fez tão diligente em alertá-los sobre o perigo. Como, então, pode a Igreja Católica ser considerada pouco caridosa por simplesmente dizer o que ele declarou, com o mesmo motivo caridoso? Uma opinião desfavorável tem ela certamente sobre todos os que não pertencem à sua comunhão, mas isso nunca corresponderia a uma atitute pouco caridosa por parte da Igreja.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

OS 12 PRINCÍPIOS DA NATUREZA DOS ANJOS


l. Os anjos têm começo, mas não podem morrer e permanecem perpetuamente idênticos a eles mesmos. 
2. Os anjos não estão sujeitos às leis do tempo, mas têm uma medida de duração que lhes é própria. 
3. Os anjos situam-se de maneira absoluta acima do espaço, sem jamais poderem ser submetidos às suas leis. 
4. Os anjos exercem seu poder sobre o mundo material, diretamente pela vontade. 
5. A vida dos anjos é dotada apenas de duas faculdades: inteligência e vontade. 
6. No que toca à ordem natural, o anjo não pode errar, nem em sua inteligência e nem em sua vontade. 
7. O anjo jamais volta atrás de uma decisão que tenha tomado. 
8. O espírito angélico não é como o espírito humano, sujeito a um desenvolvimento gradual pois, desde o início, surge com plenitude de conhecimento. 
9. O anjo pode influenciar diretamente uma outra inteligência criada, mas não pode agir diretamente sobre outra vontade criada.
10. Os anjos são dotados de livre-arbítrio, sendo capazes de amar e odiar. 
11. Os anjos conhecem as coisas materiais e individuais. 
12. Os anjos não conhecem o futuro, nem os pensamentos secretos das outras criaturas racionais, nem os mistérios da graça, a menos que tais coisas lhes sejam livremente reveladas por Deus ou por essas outras criaturas racionais.

(Excertos da obra 'Os Anjos', de Dom Vonier)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

OS GRANDES TESOUROS DA MÚSICA SACRA (I)

Miserere é um dos salmos atribuídos a Davi, rei de Israel [Salmo 50]. E é um clamor de piedade por um crime terrível: Davi desejou Bate-Seba (ou Betsabé), esposa de seu soldado mais fiel, Urias - o hitita - e deitou-se com ela e a engravidou. O rei então tramou para que Urias fosse morto em batalha. O bebê nasceu e morreu em seguida. Davi então pediu perdão e casou-se com Bate-Seba, que lhe deu outro filho: Salomão. 

Miserere mei é a versão musicada do salmo 50 feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri (1582 - 1652), reproduzida na gravação abaixo. A tradução apresentada na sequência é bastante convencional do Salmo 50 em português. Música sacra para se ouvir, deleitar-se e se recolher na presença de Deus!



SALMO 50

Miserere mei, Deus: secundum magnam misericordiam tuam. 
Et secundum multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam. 
Amplius lava me ab iniquitate mea: et a peccato meo munda me. 
Quoniam iniquitatem meam ego cognosco: et peccatum meum contra me est semper. 
Tibi soli peccavi, et malum coram te feci: ut justificeris in sermonibus tuis, et vincas cum judicaris. Ecce enim in iniquitatibus conceptus sum: et in peccatis concepit me mater mea. 
Ecce enim veritatem dilexisti: incerta et occulta sapientiae tuae manifestasti mihi. 
Asperges me hysopo, et mundabor: lavabis me, et super nivem dealbabor. 
Auditui meo dabis gaudium et laetitiam: et exsultabunt ossa humiliata. 
Averte faciem tuam a peccatis meis: et omnes iniquitates meas dele. 
Cor mundum crea in me, Deus: et spiritum rectum innova in visceribus meis. 
Ne proiicias me a facie tua: et spiritum sanctum tuum ne auferas a me. 
Redde mihi laetitiam salutaris tui: et spiritu principali confirma me. 
Docebo iniquos vias tuas: et impii ad te convertentur. 
Libera me de sanguinibus, Deus, Deus salutis meae: et exsultabit lingua mea justitiam tuam. 
Domine, labia mea aperies: et os meum annuntiabit laudem tuam. 
Quoniam si voluisses sacrificium, dedissem utique: holocaustis non delectaberis. 
Sacrificium Deo spiritus contribulatus: cor contritum, et humiliatum, Deus, non despicies. 
Benigne fac, Domine, in bona voluntate tua Sion: ut aedificentur muri Ierusalem. 
Tunc acceptabis sacrificium justitiae, oblationes, et holocausta: tunc imponent super altare tuum vitulos.


Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade. 
E conforme a imensidade de vossa misericórdia, apagai a minha iniquidade.
Lavai-me totalmente de minha falta, e purificai-me de meu pecado.
Eu reconheço a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado.
Só contra vós pequei, o que é mau fiz diante de vós. Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento.
Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado.
Não obstante, amais a sinceridade de coração. Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim.
Aspergi-me com um ramo de hissope e ficarei puro. Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.
Fazei-me ouvir uma palavra de gozo e de alegria, para que exultem os ossos que triturastes.
Dos meus pecados desviai os olhos, e minhas culpas todas apagai.
Ó meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza.
De vossa face não me rejeiteis, e nem me priveis de vosso santo Espírito.
Restituí-me a alegria da salvação, e sustentai-me com uma vontade generosa.
Então, aos maus ensinarei vossos caminhos, e voltarão a vós os pecadores.
Deus, ó Deus, meu salvador, livrai-me da pena desse sangue derramado, e a vossa misericórdia a minha língua exaltará.
Senhor, abri meus lábios, a fim de que minha boca anuncie vossos louvores.
Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais; e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis.
Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar.
Senhor, pela vossa bondade, tratai Sião com benevolência, reconstruí os muros de Jerusalém.
Então, aceitareis os sacrifícios prescritos, as oferendas e os holocaustos; e sobre vosso altar vítimas vos serão oferecidas (Sl 50, 3,21).

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

VÓS SOIS OS TEMPLOS SANTOS DE DEUS!

Eu e o Pai viremos e faremos nele nossa morada. Franqueia, então, a tua porta ao que vem, abre tua alma, alarga o íntimo de tua mente para veres as riquezas da simplicidade, os tesouros da paz, a doçura da graça. Dilata o coração e corre ao encontro do sol, da eterna luz, a que ilumina a todo homem. Esta luz verdadeira brilha para todos. Mas, se alguém fecha as janelas, priva-se da eterna luz. Assim também Cristo é repelido se fechas a porta de teu espírito. Embora possa entrar, não quer ser importuno, não quer entrar à força. Recusa-se a usar de coação!

Nascido da Virgem, ele saiu do seio, irradiando luz sobre o mundo inteiro, refulgindo para todos. Os que desejam, acolhem a claridade inextinguível que noite alguma interrompe. Pois à luz do sol que vemos diariamente, sucede a noite escura; mas o sol da justiça jamais se põe, porque à sabedoria não sucede a maldade.

Feliz aquele a cuja porta Cristo bate. Nossa porta é a fé, que, quando sólida, defende a casa toda. Por esta porta Cristo entra. Daí dizer a Igreja no Cântico: 'Eis a voz do meu amado. Ele bate. Abre-me, minha irmã, minha amada, minha pomba, minha perfeita; minha cabeça está coberta de orvalho, e os cachos de meus cabelos cheios das gotas da noite' (Ct 5,2). Observa que o Deus Verbo bate à porta principalmente quando sua cabeça está coberta de orvalho noturno. Digna-se visitar os atribulados e amargurados, para que não sucumbam às amarguras. A cabeça cobre-se de orvalho e de gotas quando o corpo sofre. Importa, portanto, vigiar para não ficar excluído à chegada do Esposo. Se dormes e o teu coração não vigia, afasta-se antes de bater. Se o teu coração está vigilante, bate e pede ser-lhe aberta a porta.

Possuímos a porta de nossa alma, possuímos também portais sobre os quais se diz: 'Levantai, príncipes, vossos portais, erguei-vos, portas eternas, e entrará o Rei da glória'. Se quiseres levantar os portais de tua fé, entrará em ti o Rei da glória, trazendo a vitória de sua paixão. Tem também portas à justiça. Delas lemos o que disse o Senhor Jesus por meio de seu profeta: 'Abri-me as portas da justiça' (Sl 118,19). Há quem tenha portas, há quem tenha portais. A essas portas Cristo bate, bate também aos portais. Abre, então, para Ele que quer entrar e encontrar vigilante a Esposa.

(Excertos do 'Do comentário sobre o Salmo 118', de (Santo Ambrósio)