sábado, 15 de março de 2025

TESOURO DE EXEMPLOS II (01/03)


01. FOI AVISADO DE QUE MORRERIA

Rapazes, até quando continuareis zombando da autoridade de Deus? Até quando desprezareis o seu preceito de ir à missa aos domingos, à confissão, à comunhão? Tendes saúde, sois fortes, alegres, adulados, amados de vossos pais, estimados por  vossoss colegas, bem sucedidos nos estudos, ricos e afortunados... Mas uma coisa eu vos digo: de Deus não se zomba. Se nao fazeis caso da religião, se não cumpris vossos deveres morais e religiosos, se continuais na libertinagem, nao duvideis que o castigo virá. Como? De que maneira? Quando? A estas perguntas nao podemos responder: sao mistérios de Deus. O certo, porém, é que Ele anunciou temerosos castigos contra os profanadores dos dias santos. E esses castigos, nesta ou na outra vida, virão infalivelmente. 

Escutem o que nos diz o grande doutor da Igreja Santo Afonso de Ligório. Era - diz ele - o dia 24 de novembro de 1668. Dois amigos passeavam juntos nos jardins de Palermo. Um deles, chamado  César, era ator dramático. 
➖ César - disse-lhe o amigo - você está triste!
➖ Muito. 
➖ Por que não conversas?
➖ Não posso. 
➖ Tens alguma preocupação?
➖ Sim; e muito grande. 
➖ Podes contar o que é?
➖ Sim; como és um bom amigo, vou abrir-te o meu coração...

Já sabes que minha mãe era uma pessoa muito boa. Educou-me na piedade. Mais tarde, porém, abandonei tudo e tornei-me um libertino. Dediquei-me ao teatro; tenho tido muitos sucessos, mas, também, tenho dado muitos escândalos. Um dia, estando eu em Nápoles, passei por uma praça abarrotada de povo. Parei. Era um missionário que estava pregando. Ouvi-lhe o sermão sobre o inferno e tive medo. Converti-me, confessei-me com ele e, ao terminar, ele me disse: 'Não voltes ao vômito do pecado, porque, se voltares (digo-te da parte de Deus), só terás mais doze anos de vida'. 
➖ Isso te disse o padre?
➖ Exatamente.
➖ E por que hoje te lembras disso?
➖ Porque hoje, exatamente, vai fazer doze anos...
➖ Qual nada! Não  te vejo com cara de moribundo!
➖ Sim; hoje estou melhor do que nunca.
➖ Então; deixa-te de tolices. Eu te profetizo, sem ser missionário, que esta noite terás um dos maiores sucessos de tua vida. E viverás ainda muito, até caires de velhice.
➖ Deus te ouça, meu amigo; mas asseguro-te que tenho medo, muito medo. 

Chegou a noite. Começou a peça de teatro. César atuava no palco e todos o aplaudiam em delírio. De repente, cambaleou e caiu. Acercaram-se dele e tentaram erguê-lo... mas estava morto! Realizava-se, assim, a tremenda profecia do missionário. 

Nao sou eu, mas o próprio Deus, quem vos diz: Rapazes, frequentai a missa! Porque, se não observais a minha lei e se  profanais as minhas festas, contra vós enviarei terríveis castigos quer nesta, quer na outra vida.

02. QUEM QUER DISCUTIR RELIGIÃO?

Viajava num trem um douto e modesto frade. Ele lia o seu Breviário e nao prestava atenção ao que os vizinhos conversavam, embora tivesse percebido que andavam a gracejar sobre a religião. Uma senhora, mais petulante que os outros, intrigada com o silêncio do frade, voltou-se para ele e disse:
➖ Saiba, padre, que eu sou incrédula!
➖ Então a senhora não admite a revelação divina?
➖ Ah! não; isso de revelação divina não passa de fábula. 
➖ A senhora já estudou algumas provas da revelação?
➖ Não, senhor.
➖ Terá lido alguma obra de São Tomás ou de Balines?
➖ Também não.
➖ E não passou a vista por alguma obra de apologética fundamental, a de Hilaire, por exemplo?
➖ Não, senhor. 
➖ Pois então, minha senhora, permita-me que lhe diga a verdade: a senhora não é incrédula, a senhora é analfabeta!

É por aí mesmo. Certos 'incrédulos' posam como tal, dizendo ou escrevendo disparates contra a religião e, no entanto, não passam de pobres analfabetos em assuntos religiosos. Que lhes aproveite, pois, esta lição!

03. AH! ESSAS MODAS...

Regressava das missões da África um missionário de barba longa e veneranda. Todos no navio o tratavam com respeito. Durante o dia, enquanto os passageiros se divertiam, ele permanecia no convés, rezando e contemplando o belo céu. Comparava a sua paz com aquele torvelinho, cada dia mais se alegrava de ter escolhido a melhor parte, ou seja, o sacerdócio. 

Uma tarde desceu para a refeição e modestamente ocupou o seu lugar à mesa. Em frente dele, sentou-se uma senhora vestida muito à moda, isto é, quase como Eva no paraíso. O missionário lançou-lhe um olhar sério e guardou silêncio. Durante toda a refeição, manteve-se constrangido. Compreendia a obrigação que tinha de advertir aquela senhora, mas queria fazê-lo de forma caridosa e polida para que sua repreensão fosse mais eficaz. 

Ainda estava indeciso, quando chegou a sobremesa. A senhora tomou delicadamente uma maçã da bandeja e a ofereceu ao padre.
➖ Desculpe-me, senhora - disse ele - mas preferiria que a senhora mesmo a comesse. 
➖ Não não, faça-me o favor...
➖ De modo nenhum, pois é à senhora que compete comer essa maçã.
➖ Mas por que, padre?
➖ Para que se repita o caso descrito na Sagrada Escritura, lembra-se?: Eva tomou uma maçã, levou-a à boca e deu-lhe uma dentada e, então, abriram-se-lhe os olhos e compreendeu que estava desnuda!

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos' - Volume II, do Pe. Francisco Alves, 1960; com adaptações)

QUANDO O INFERNO É AQUI...

Recentes ataques contra cristãos e contra a etnia muçulmana alauita resultaram no massacre de centenas de civis na Síria, pelas forças de segurança da maioria sunita, alçada ao poder em dezembro de 2024, quando a perseguição religiosa tornou-se recorrente no país. Este fato corrobora o aumento crescente da perseguição aos cristãos em todo o mundo, traduzida pela realidade atual e brutal desta hierarquia anti-cristã apresentada na lista abaixo.

(clicar sobre a imagem)
portasabertas.org.br

sexta-feira, 14 de março de 2025

AS GRANDES HERESIAS: ARIANISMO

Na construção da civilização cristã, certamente um dos primeiros e mais relevantes debates foi pautado sobre a divindade de Jesus Cristo. Jesus era Deus ou não? Jesus era realmente Deus feito homem ou Jesus era um ser criado? O Arianismo é a heresia que nega a divindade de Cristo e proclama que Jesus foi criado por Deus como um primeiro ato da sua criação e que a natureza de Cristo era distinta da natureza divina. A heresia recebeu esta designação por ter sido defendida inicialmente por Ário, um sacerdote de Alexandria/ Egito no início do século IV.

O arianismo proclama, portanto, que Jesus é um ser criado finito com alguns atributos divinos, mas Ele não é eterno e não é divino em Si mesmo, ou seja, Jesus não seria nem totalmente Deus e nem totalmente humano e as limitações de Jesus como ser humano não têm impacto em sua natureza divina ou em sua eternidade. Nesta concepção, Jeus seria subordinado a Deus Pai, negando por princípio a consubstancialidade entre Deus Pai e Jesus Cristo. Assim, a mera interpretação direta e equivocada dos textos bíblicos revela aos arianistas que Jesus não podia 'sentir fome' ou 'ficar cansado' sendo Deus, como se tais expressões não fossem asserivas à natureza humana de Jesus. Nesta mesma linha de contestação, a expressão 'filho primogênito' dada a Jesus seria uma prova incontestável de que o Filho de Deus seria um ato de criação direta de Deus Pai.

O sofisma absurdo de Ário foi que ele ter imposto a noção de tempo à natureza eterna (atemporal) de Deus. É óbvio que, para a natureza humana, o pai existe antes do filho, pois os humanos vivem no tempo. Gerar para os seres humanos é um ato embutido no tempo e na matéria. Como Deus é eterno, o Pai dá a sua natureza espiritual, divina e atemporal ao seu Filho Unigênito e, portanto, 'antes' e 'depois' não têm nenhum sentido. Uma vertente da heresia, chamada semi-arianismo, buscou abrandar a posição ariana original, proclamando que o Filho era de uma substância semelhante ao Pai, ainda que não fosse 'da mesma substância'.

A 'lógica' herética de Ário rapidamente ganhou muitos seguidores e teve um impacto tremendo na Igreja Primitiva. O Arianismo não se limitou a influenciar vários teólogos dos primeiros séculos do cristianismo; seu impacto afetou o próprio aparecimento da Ortodoxia (o ordenamento padrão da Fé Católica) e constituiu a primeira grande controvérsia da Fé Cristã a ser decidida por um concílio ecumênico. Depois de ser excomungado em Alexandria, Ário fugiu para Cesareia, onde o bispo Eusébio o ajudou a espalhar os seus erros. Em 325, no Primeiro Concílio de Niceia, o arianismo foi condenado formalmente como heresia, proclamando que o Filho é consubstancial ao Pai, como posteriormente explicitado no Credo Niceno-Constantinopolitano.  Santo Atanásio foi o grande defensor da Fé Cristã contra essa heresia que permaneceu ainda como uma séria  ameaça à Igreja por mais de meio século e que ainda permanece viva atualmente, em muitos aspectos, entre os ensinamentos dos mórmons e das Testemunhas de Jeová.

quinta-feira, 13 de março de 2025

BREVIÁRIO DIGITAL - ICONOLOGIA CRISTÃ (IV)

 

CRISTO DA HUMILDADE PERFEITA

Quando exposto ao jugo do orgulho e da vanglória, responda com a nudez da imolação e da pobreza. Diante às perseguições injustas, recline a cabeça. Face às zombarias, infâmias e falsas acusações, cruze os braços sobre o coração e receba com humilde acolhimento o que é oferecido com despeito. E quando confrontado com a pergunta: 'Até onde devo tolerar tamanha vergonha e tanta injustiça?', lembre-se de que a resposta é 'até o túmulo'. O ícone nos direciona e nos incentiva buscar pela humildade a perfeita Imitação de Cristo.

quarta-feira, 12 de março de 2025

SOBRE PRESUNÇÃO E PROGRESSO ESPIRITUAL

A razão porque não somos melhores é que não queremos ser melhores; o pecador e o santo diferenciam-se apenas por uma série de pequeninas decisões que se tomam no recôndito do nosso coração. Em parte alguma encontram-se opostos tão próximos como no reino do espírito; um abismo separa o pobre do rico, o qual só se pode transpor com a ajuda de circunstâncias externas e de boa sorte. A linha que divide a ignorância da erudição é também profunda e extensa: tempo livre para o estudo e um espírito bem dotado são necessários para converter um ignorante em um homem culto. Mas a passagem do pecado à virtude, da mediocridade à santidade não precisa de 'sorte' e nem ajuda das circunstâncias externas. Pode realizar-se por um ato eficaz da vontade, em colaboração com a graça de Deus.

Santo Tomás diz-nos que 'não somos santos porque não queremos sê-lo'. Não diz, note-se bem, que não desejamos ser santos; muitos, na verdade, têm veleidades disso. Mas a simples veleidade é o desejo de que alguma coisa aconteça, sem que para isso ponhamos da nossa parte o trabalho. Querer significa que estamos dispostos a pagar as custas necessárias em esforço e em sacrifício. Por vezes iludimo-nos, imaginando que temos buscado ser melhores, quando, na verdade, fizemos muitas reservas e resolvemos não mudar muitos dos nossos modos de proceder.

Então o desejo é simplesmente uma veleidade. O segredo do progresso espiritual encontra-se no Credo: 'Desceu aos infernos; ao terceiro dia ressuscitou'. Cada um de nós também deve descer ao subconsciente, às regiões do nosso espírito que a treva envolve, porque é aqui que se ocultam as secretas reservas. Estas reservas não são facilmente vistas por nós, mas dão cor a tudo o que vemos; são como essas janelas coloridas que fazem chegar ao nosso intelecto a verdade da realidade externa mudada. A realidade é deformada, se temos reservas tais como preconceitos, hábitos de pecado, orgulho, avareza e inveja; qualquer destas coisas pode tornar-nos impossível um juízo honesto. A verdade é, então, distorcida, para a ajustar às nossas imperfeições; mentimos a nós próprios, para não ter de mudar, nem de abandonar estes hábitos tão estimados de pecado.

Muitos de nós passamos a nossa vida tendo de nós uma falsa ideia, que de modo nenhum queremos ceder; receamos a amargura de nos encontrarmos menos nobres do que gostamos de nos julgar. Coamos a realidade através de um crivo de amor-próprio, pondo de lado toda a verdade que nos incomode. Usar este critério pessoal de verdade é tão errado e vão como seria deixar às nossas preferências decidir qual tecla do piano é o lá médio. Podíamos fazer de conta que uma tecla mais fácil de tocar fosse esse lá médio, e agir de acordo com essa preferência; mas resultaria daí a desarmonia, não a harmonia. A realidade não pode ser forçada a adaptar-se aos nossos desejos.

Essas reservas a que nos prendemos, estas atitudes que teimamos em não abandonar ou mudar, afetam os nossos juízos e tornam-se falsos. Antes de podermos, algum dia, levantar-nos para alegria da realidade de Deus, temos de descer ao inferno, onde escondemos estas faltas que queremos desconhecer. Isto exige de nós uma análise plena de nós próprios à luz das imutáveis leis de Deus.

Há expressões da gíria, ou ditos populares, que recomendam que não se tenha presunção. Nada, de fato, se opõe tanto ao nosso progresso para Deus como o egoísmo, e o egoísta está sempre cheio de ilusões voluntárias, a respeito de si mesmo, de faltas 'sagradas', a que não quer renunciar, que nem mesmo quer confessar que as tem. Eis porque o egoísta, que existe em todos nós, tem necessidade urgente de uma inspeção desapiedada a todos os ângulos e cantos escondidos do espírito. Importa sobremaneira ver o que na realidade somos e não o que julgamos ser. Devemos amar mais a Verdade do que o nosso eu; devemos estar dispostos a renunciar a todas as nossas faltas que ainda não descobrimos se, enfim, queremos realmente nos tornar aptos para ver a Verdade como ela é.

Nada faz coxear tanto a nossa vida espiritual como estes 'parasitas' escondidos no motor da nossa alma. Podem ser uma ou outra das nossas faltas comuns, tais como a ganância, a acrimônia para com os outros, a inveja e o ódio. Aqueles que se esforçam por se aproximar cada vez mais de Deus sem autoanálise, admiram-se de sofrer tão frequentes derrotas: é invariavelmente por causa do Cavalo de Troia que está dentro deles, o defeito dominante ainda não reconhecido. Enquanto não for extirpado e confessado diante de Deus, com o desejo de o destruir, não existirá real progresso espiritual. Com justeza se exprimia Santo Agostinho, quando dizia: 'O Vosso melhor servo, Senhor, não é aquele que procura ouvir de Vós aquilo que ele mesmo quer, mas antes aquele que procura querer o que ouve de Vós'.

(Excertos da obra 'Rumo à Felicidade' do Venerável Fulton Sheen)

terça-feira, 11 de março de 2025

FRASES DE SENDARIUM (XLVIII)

'O Calvário proclama que as nossas dores serão santificadas, se unidas à Cruz de Cristo'

 (São Josemaria Escrivá)

Senhor, não vos peço não ter tentações ou sofrimentos e nem que se cumpra as minhas humanas vontades, mas que o teu propósito para mim se realize em plenitude em cada dia da minha vida.

segunda-feira, 10 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XIX)


87. O erro está em termos uma opinião demasiado elevada daquilo a que o mundo chama de honra, estima e fama. Por mais que o mundo me louve ou honre, isso não pode aumentar nem um pouco o meu mérito ou a minha virtude; e também, se o mundo me vituperar, não pode tirar de mim nada do que tenho ou do que sou em mim mesmo. Conhecerei a vaidade da verdade à luz dessa vela bendita que terei na mão à hora da minha morte. De que me servirá, então, ter sido estimado e honrado por todo o mundo, se a minha consciência me convencer de pecado diante de Deus? Ah, que loucura seria para um nobre, possuidor de talentos que o tornariam querido pelo seu rei e o fariam um favorito na corte, se ele procurasse antes ser adulado por seus servos e servas, e encontrasse prazer em tal adulação miserável. Mas é uma loucura muito maior para um cristão, que poderia ganhar o louvor e a honra de Deus e de todos os anjos e santos no céu, procurar antes ser louvado e honrado pelos homens e gloriar-se nisso. Pela humildade, posso agradar a Deus, aos anjos e aos santos; portanto, não é um orgulho desprezível que me faz desejar a estima, o louvor e a aprovação dos homens, quando nos é dito que 'é aprovado aquele a quem Deus recomenda?' [2Cor 10,18].

O pensamento da morte é proveitoso para adquirir a humildade; e a humildade ajuda-nos muito a obter uma morte santa. Santa Catarina de Sena, pouco antes da sua morte, foi tentada a ter pensamentos de orgulho e vanglória por causa da sua própria santidade; mas a esta tentação ela respondeu: 'Dou graças a Deus por nunca ter sentido, em toda a minha vida, qualquer vanglória'. Oh, como é belo poder exclamar no leito de morte: 'Nunca conheci a vanglória'.

88. Mesmo admitindo o valor da estima e da fama do mundo, pelo simples fato de a amarmos e desejarmos no nosso coração, podemos deduzir daí quão grande é a virtude da humildade, pois, oferecendo a Deus tudo o que temos de tão precioso, juntamente com o nosso amor-próprio, oferecemos-lhe algo que estimamos muito. O voto de castidade é considerado heroico, porque assim sacrificamos a Deus os prazeres dos sentidos. O martírio é considerado heroico, porque o mártir oferece assim a sua vida em holocausto a Deus. E também é considerado heroico dar todos os seus bens aos pobres. Mas a nossa autoestima é certamente o que temos de mais precioso do que o dinheiro, a satisfação dos sentidos, ou mesmo a própria vida, porque muitas vezes arriscamos todas estas coisas em nome da nossa reputação. Assim, ao oferecermos a Deus a nossa autoestima com humildade, oferecemos aquilo que consideramos mais precioso.

Isto é verdadeiramente oferecer a Deus 'o sacrifício, o incenso e o perfume da lembrança' [Eclo 40,15]. Os que vivem no mundo podem muitas vezes ter mais mérito pela sua humildade de coração do que os que fazem votos de pobreza e castidade no claustro sagrado, porque é pela prática desta humildade que formamos em nós a 'nova criatura', sem a qual São Paulo nos diz que 'nem a circuncisão nem a incircuncisão valem nada' [Gl 6,15], o que equivale a dizer que, quer sejais sacerdote ou leigo, o vosso estado nada pode valer sem a humildade. A humildade sem a virgindade pode ser agradável a Deus, mas nunca a virgindade sem a humildade. As cinco virgens loucas não lhe foram desagradáveis? Vanitate superbiæ - diz Santo Agostinho. E se a própria Virgem agradou a Deus pela sua virgindade, mereceu também ser escolhida para ser sua Mãe pela sua humildade, como diz São Bernardo: 'Pela sua virgindade agradou a Deus, pela sua humildade o concebeu' [Hom. I sup. Missus est].

89. É muito fácil uma pessoa orgulhosa cair em pecados graves e terríveis; e, depois de ter caído, encontrar grande dificuldade em acusar-se deles no sacramento da penitência; porque, amando demasiado a sua autoestima e reputação e temendo perdê-las aos olhos do seu confessor, prefere cometer um sacrilégio a revelar a sua fraqueza. Procura um confessor que lhe seja desconhecido, para não se envergonhar; mas, se não se envergonhava de pecar, por que se envergonharia tanto de confessar o seu pecado, se não fosse por motivos de orgulho? Minha alma, dize a ti mesma: 'A razão pela qual não sinto verdadeira dor pelos meus pecados é a minha falta de humildade, pois é impossível que o coração sinta arrependimento ou contrição se não for humilde. Falta-me humildade, e é por isso que não tenho coragem de confessar os meus pecados com franqueza e sem desculpas'. Pede a Deus humildade; e, à medida que o teu coração se tornar mais humilde, sentirás uma dor mais profunda por o teres ofendido, e dessa humildade sincera as palavras fluirão sem dificuldade para os teus lábios, porque 'quem magoa um coração, nele excita a sensibilidade' [Eclo 22,24]. 

É o orgulho que nos compele a reter os nossos pecados no confessionário e a procurar amenizar a sua maldade com muitas desculpas. Ó orgulho maldito, causa de inúmeros sacrilégios! Mas, ó bendita humildade! O rei Davi foi humilde no seu arrependimento, porque não desculpou os seus pecados, mas acusou-se publicamente deles; nem pôs a culpa dos seus pecados nos outros, mas atribuiu-os apenas à sua própria maldade: 'Eu sou aquele que pecou' [2Rs 24,17]. Também Madalena, no seu arrependimento, não procurou Jesus Cristo num lugar escondido, mas procurou-o na casa do fariseu e quis mostrar-se pecadora diante de todos os convidados. Santo Agostinho, sendo verdadeiramente humilde no seu arrependimento, fez a confissão dos seus pecados a todo o mundo para sua maior confusão e vergonha.

90. É difícil para nós darmo-nos conta do nosso nada, e é difícil também referir todas as coisas a Deus sem reservar nada para nós mesmos, porque não é realmente nosso o nosso trabalho, a nossa diligência e a cooperação da nossa vontade? Admitamo-lo, mas se tirarmos a luz, a ajuda e a graça recebidas de Deus, o que é que nos resta de todas estas coisas? As nossas ações naturais só se tornam meritórias quando são amparadas espiritualmente por Cristo Jesus. É Jesus Cristo que eleva e enobrece todas as nossas ações que, por si sós, seriam totalmente insuficientes para nos proporcionar a glória da vida eterna.

O modo como a vontade é levada a cooperar com a graça é um mistério que não compreendemos completamente; mas é certo que, se formos para o céu, daremos graças pela nossa salvação unicamente à misericórdia de Deus: 'As misericórdias do Senhor cantarei para sempre' [Sl 88,2]. Podemos, pois, dizer com o santo rei Davi e estar plenamente persuadidos da sua verdade, que a natureza humana é mais fraca e mais impotente do que podemos imaginar, porque na natureza que recebemos de Deus só temos, pela queda de Adão, a ignorância do espírito, a fraqueza da razão, a corrupção da vontade, a desordem das paixões, a doença e a miséria do corpo. Não temos, portanto, nada em que nos gloriar, mas em tudo podemos encontrar motivos de humilhação. 'Humilha-te em todas as coisas' [Eclo 3,20] diz o Espírito Santo e Ele não nos diz para nos humilharmos apenas em algumas coisas, mas em todas - in omnibus.

91. A santa humildade é inimiga de certas especulações sutis; por exemplo: dizes que não podes compreender como é que tu próprio és um mero nada, no fazer e no ser, porque não podes deixar de saber que, na realidade, tu és alguma coisa e podes fazer muitas coisas; que não podes compreender porque é que és o maior de todos os pecadores, porque conheces tantos outros que são maiores pecadores do que tu; nem como é que mereces todos os vitupérios dos homens, quando sabes que não fizeste nenhuma ação digna de culpa mas, pelo contrário, muitas dignas de louvor.

Deves censurar-te por estares ainda tão longe da verdadeira humildade e pensares que podes compreender o sentido destas coisas. O verdadeiro humilde crê que é em si mesmo um simples nada, um pecador maior do que os outros, inferior a todos, digno de ser injuriado por todos por ser, mais do que todos, ingrato para com Deus. Ele sabe que este sentimento da sua consciência é absolutamente verdadeiro, e não se preocupa em investigar como é que isto torna-se verdade; o seu conhecimento é prático, e mesmo que ele não se compreenda a si próprio, e não possa explicar aos outros, com raciocínios sutis o que sente no seu coração, importa-se tão pouco com o fato de não o poder explicar como se importa com o fato de não poder explicar como é que o olho vê, a língua fala, o ouvido ouve. Daí se deduz que não é preciso ter grandes talentos para ser humilde e que, portanto, diante do tribunal de Deus, não será desculpa válida dizermos 'Não fui humilde porque não sabia, porque não compreendia, porque não estudava'. Podemos ter uma boa vontade, um bom coração, e não sermos inteligentes; e não há ninguém que não possa compreender esta verdade, que de Deus vem todo o bem que se possui e que ninguém tem nada de seu, exceto a sua própria malícia. 'A destruição é tua, ó Israel; teu socorro está somente em Mim' [Os 13,9], disse Deus pela boca do seu profeta.

92. A humildade é um meio poderoso de subjugar a tentação e, da mesma forma, as tentações servem para manter a humildade; porque é quando somos tentados que estamos praticamente conscientes de nossa própria fraqueza e da necessidade que temos da graça divina. É por isso que Deus permite que caiamos em tentação, reduzindo-nos por vezes ao próprio limite de sucumbir a ela, para que aprendamos a fraqueza da nossa virtude e o quanto precisamos do auxílio de Deus.

E até nisto podemos ver a infinita sabedoria de Deus, que dispôs que os próprios demônios, espíritos de orgulho, contribuíssem para nos tornar humildes, se soubéssemos aproveitar bem as nossas tentações. No entanto, devemos lembrar-nos de que, em todas as nossas tentações, a primeira coisa a fazer é exercitar a humildade que deriva de um conhecimento prático de nós mesmos e de como somos propensos ao mal, se Deus não estender a sua mão para nos refrear através da sua graça. Não esperemos para conhecer a nossa fraqueza até termos caído; mas conheçamo-la de antemão, e o conhecimento dela será um meio eficaz para nos impedir de cair. 'Antes da doença, toma-se um remédio; antes da doença, humilha-te' [Eclo 18, 20-21], diz a Sagrada Escritura. Os humildes nunca carecerão de graça no tempo da tentação e, com a ajuda dessa graça, tirarão proveito dessas mesmas tentações; pois a misericordiosa providência de Deus dispôs as coisas de tal modo que, com a ajuda especial da sua graça, Ele 'não deixará que nenhuma tentação se apodere de vós' [1Cor 10,13].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)