CONTOS DE FANTASIA (LENDAS)
399. O ORGULHOSO NÃO SE AJOELHA
Diz uma lenda que na cidade de Colônia vivia um padre santo. Não era sábio; não era eloquente; mas era um grande confessor. Dizem que todos os que se levantavam de seu confessionário levavam na fronte o ósculo da paz.
Foi na véspera de uma grande solenidade. Uma grande multidão de penitentes esperava ao redor do confessionário daquele santo sacerdote. Entre eles achava-se um homem, o único que se conservava de pé. Tinha um rosto triste. escuro, quase negro.... atitude que revelava imensa tristeza e desconcertante inquietação. Chegou a sua vez. Acercou-se do confessionário, mas não se ajoelhou.
➖ Irmão - disse brandamente o confessor - ajoelhe-se.
➖ Nunca! Eu nunca me ajoelho.
➖ Quem é o senhor?
➖ Isso não lhe importa.
➖ De onde vem?
➖ Também isso não lhe importa.
➖ O senhor tem razão - respondeu humildemente o confessor - nada disso me importa. Mas, então, o que deseja?
➖ Confessar-me, porque trago dentro do meu coração um inferno que me abrasa e busco a paz.
➖ Irmão - replicou o confessor com toda humildade de sua alma - se procura a paz, aqui a encontrará, mas deve ajoelhar-se.
O penitente, com um gesto de soberba, respondeu:
➖ Nunca! Já lhe disse que nunca me ajoelho.
➖ Irmão - disse então o confessor com grande mansidão - compadeço-me do senhor; faça de pé a sua confissão, pois quando tiver diante dos olhos a gravidade de seus pecados, certamente se ajoelhará.
➖ Nunca! - atalhou o penitente- Ajoelhar-me? Nunca! Mil vezes lhe direi que não me ajoelho nunca!
➖ Irmão, comece então!
E começou o penitente a contar os seus pecados.
E eram tantos e tão horríveis, que o confessor, que até então conservara os olhos baixos, levantou-os, fixou o penitente e disse-lhe com extrema bondade:
➖ Irmão, o senhor está me enganando.
➖ Não o engano.
➖ Esses pecados o senhor não pôde cometê-los.
➖ Mas eu os cometi.
➖ Para ter cometido tantos pecados seria necessário que o senhor fosse muito mais velho do moço que ainda é.
➖ Moço? Já tenho muitos séculos!
➖ Muitos séculos?
➖ Sim... muitos séculos!
➖ Quem é o senhor, afinal?
➖ Não lhe importa.
➖ De onde vem?
➖ De uma região onde não há sol.
➖ Então já adivinho quem és. Irmão, ainda há perdão e misericórdia para o senhor, mas ajoelhe-se.
➖ Nunca! Nunca me ajoelharei!
➖ Então o senhor é...
➖ Sou Satanás! E desapareceu.
Sim; há perdão para todos os pecadores. Nosso Senhor exige apenas que o pecador, reconhecendo e detestando os seus pecados, humilde e sinceramente os acuse no tribunal da penitência.
400. A MORTE NIVELA TUDO
Morreu em 1916 Francisco José, imperador da Áustria, que por muitos anos soubera conservar, sob o poderio paternal de seu cetro, muitos povos que antes viviam em contínuas guerras. O féretro foi levado à cripta da igreja dos Padres Capuchinhos de Viena, onde jazem outros reis e imperadores.
O mestre de cerimônias bateu à porta.
➖ Quem é? - perguntou do lado de dentro, segundo o cerimonial, um padre capuchinho.
Os cortesãos responderam:
➖ Francisco José, imperador e rei.
De lá de dentro a mesma voz austera do frade respondeu:
➖ Não o conheço.
Fez-se um momento de silêncio dentro da cripta. Do lado de fora, à porta, deliberavam os senhores e políticos. Bateram outra vez. E outra vez insiste de dentro o guardião daquelas tumbas:
➖ Quem é?
➖ Francisco José de Habsburgo - responderam de fora os que sustentavam em seus ombros o régio féretro.
E de novo ouviu-se a voz do frade:
➖ Não o conheço.
Fez-se mais um momento de silêncio e mais um instante de deliberação. Urgia, porém, entregar à terra aqueles restos mortais que foram ontem de homem tão grande e que hoje ninguém os queria em parte alguma. Por isso, após um instante de imponente silêncio, outra vez a voz do Capuchinho interroga:
➖ Quem é?
E aquele que respondia em nome da política e da grandeza do império austríaco, respondeu agora:
➖ Um pobre morto.
A voz serena e imutável do guardião daqueles túmulos respondeu imediatamente:
➖ Entre!
E abriram-se as portas, dando entrada ao cadáver e ali, como um pobre morto, foi enterrado o célebre imperador: Francisco José, rei e imperador da Áustria. É certo que a morte nivela tudo. De toda a grandeza, como de toda a miséria, após a morte resta apenas um cadáver que dentro em pouco não será mais do que pó e cinza.
401. O REI MIDAS
Narra a mitologia que o rei Midas, o qual era muito avarento, por ter tratado bem a Sileno, seu prisioneiro, recebeu dos deuses a grande recompensa de converter em ouro tudo quanto a sua mão tocasse. Uma bela fortuna, não é verdade? Uma fortuna?!
Fora de si de contente, aquele rei tocou seu bastão, e o bastão se converteu em ouro cintilante; tocou a parede e a parede tornou-se toda de ouro; meteu a mão na algibeira, e toda a sua veste converteu-se num bloco de ouro preciosíssimo.. .
No palácio real, tudo agora era ouro. O rei assentou-se à mesa. A sopa, apenas lhe tocou os lábios, tornou-se ouro; o pão, a carne, tudo tornava-se ouro, de modo que o rei Midas não pôde tomar alimento algum e depois de alguns dias ia morrendo de fome rodeado de ouro. Assim diz a fábula.
Mas eu vos digo, em outro sentido, que também nós possuímos um meio de converter em ouro, isto é, em mérito preciosíssimo, todas as nossas obras. Esse meio consiste em conformar sempre e em tudo a nossa vontade com a santa vontade de Deus.
(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)