terça-feira, 14 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLII)

 

145. O santo papa São Gregório percebeu o orgulho em todos os tipos de pessoas e descreveu suas características. Alguns, diz ele, orgulham-se de seus bens, outros de sua eloquência, alguns orgulham-se de coisas mundanas e outros de coisas da Igreja e dos dons de Deus de tal forma que, cegos pela vaidade, somos incapazes de discernir isso; quer nos exaltemos acima dos outros por causa da glória mundana ou dos dons espirituais, o orgulho nunca saiu do nosso coração porque está domiciliado ali e, para se disfarçar, assume uma aparência falsa.

É bom saber também que o orgulho não tenta superiores e inferiores da mesma maneira. Ele tenta os grandes, fazendo-os entender que alcançaram sua posição por seu próprio mérito e que nenhum de seus inferiores poderia ser comparado a eles; ele tenta seus subordinados, desviando sua atenção de suas próprias falhas e fazendo-os observar e julgar as ações de seus superiores; eles falam, no entanto, de seus superiores com uma certa liberdade, e como esse orgulho é chamado de independência legítima neles, assim também no superior é chamado de zelo e decoro.

Às vezes, nosso orgulho nos obriga a falar alto, outras vezes a preservar um silêncio amargo. O orgulho é dissoluto em suas alegrias, sombrio e delirante em sua melancolia; parece honroso na aparência, mas não tem honra; é cheio de valor ao ofender, mas covarde ao ser ofendido; é lento para obedecer, importuno em suas exigências para determinar seu dever, mas negligente em cumpri-lo; embora seja rápido para se intrometer e interferir em tudo o que não lhe diz respeito, não há possibilidade de incliná-lo em qualquer direção, a menos que ele próprio se incline para isso por seu próprio gosto. Por outro lado, é astuto, e finge ser indiferente em relação a qualquer cargo ou dignidade que cobiça, para que possa ser forçado a aceitá-los, amando ter aquelas coisas que mais deseja como se impostas violentamente sobre si, por medo de ser considerado com desprezo se seu desejo por elas fosse revelado. Tudo isso é ensinamento de São Gregório.

146. Depois de considerar o orgulho em si mesmo, resta-nos observar seus efeitos, e especialmente oito dos vícios mais comuns e familiares que ele produz, que são a presunção, a ambição, a inveja, a vaidade, a ostentação, a hipocrisia, a desobediência e a discórdia. Vamos examiná-los com São Tomás.

A presunção é um vício pelo qual nos consideramos capazes de realizar coisas além de nossas forças, esquecendo a necessidade da ajuda divina. O pecador é culpado de presunção quando acredita que pode se converter a Deus quando quiser e escolher, como se a conversão fosse obra apenas de seu livre arbítrio; vivendo mal, ainda confia em ter uma boa morte; quando peca e continua pecando, confiando em obter o perdão final; quando acredita que pode, por si mesmo e sem a ajuda da graça, resistir à tentação, evitar o pecado e observar os mandamentos de Deus, ou então que pode realizar algum ato sobrenatural de fé, esperança, caridade ou contrição, ou realizar algum ato meritório para o seu bem-estar eterno e salvar-se perseverando no bem.

Tudo isso está além de nossas próprias forças, e pensar que podemos fazer essas coisas sem a ajuda especial de Deus, e sem estar dispostos a pedir essa ajuda a Deus, é um pecado de presunção - um pecado grave de orgulho pelo qual acreditamos que possuímos uma virtude quando não a temos: 'Ó presunção perversa' - diz a Sagrada Escritura - 'de onde vieste?' [Eclo 37,3]. E São Gregório, explicando qual era o pecado que Jó chamava de 'grande iniquidade' [Jó 31,28], afirmou que era a presunção, que é um insulto ao autor de toda a graça, 'pela qual o homem atribui a si mesmo todo o mérito de uma boa obra' [Lib. xxii, Mor., cap. x].

147. A ambição é um vício que nos leva a buscar nossa própria honra com avidez desmedida [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 2]. Ora, como essa honra é um sinal de respeito e estima, concedido à virtude meritória e àquele que é de grau superior, e como é certo que não temos mérito algum por nós mesmos, porque tudo o que recebemos vem de Deus, não é a nós mesmos, mas somente a Deus que tal honra é inteiramente devida.

Além disso, como essa honra foi ordenada por Deus como um meio para nos tornar capazes de ajudar o próximo, é certo que toda essa honra deve ser usada por nós para cumprir esse fim. Portanto, duas coisas são necessárias para nos permitir fugir da ambição. A primeira é que não devemos nos apropriar do mérito da honra, e a segunda é que devemos confessar que essa mesma honra é devida inteiramente a Deus e só nos é querida na medida em que pode servir ao nosso próximo. Se, portanto, nos faltar uma dessas duas coisas, cometemos o pecado da ambição. É ambicioso, portanto, aquele que busca ter algum cargo ou posição, seja no mundo ou na Igreja, quando não tem a virtude e o conhecimento necessários para mantê-lo, e que trama e conspira para ser colocado à frente de outros que são mais dignos do que ele.

É ambicioso aquele que deseja ser estimado, honrado e reverenciado mais do que sua posição merece, e como se fosse de posição superior à que realmente ocupa, para ser honrado como um pregador eloquente ou um escritor inteligente, ou em qualquer profissão à qual pertença, embora na realidade só possa ser classificado entre os indiferentes e medíocres.

É ambicioso aquele que, sem um único pensamento pela glória de Deus ou por servir ao próximo, deseja ou busca algum cargo mundano ou eclesiástico, simplesmente com vistas ao seu próprio bem-estar temporal e ao avanço de sua família, ou deseja ganhar a honra de algum cargo elevado ou bispado, 'pelo amor ao poder' - como diz Santo Agostinho - 'e pelo orgulho da posição' [Lib. xix, De Civ. Dei., cap. xiv].

Jesus Cristo demonstra um ódio especial por esse vício em vários trechos do seu evangelho [Mt 18, 20. 23; Lc 9,12] e os Padres argumentam, a partir disso, que o homem ambicioso está em estado de pecado mortal; e é fácil para as pessoas mais espirituais cometerem esse pecado, como diz Santo Ambrósio: 'A ambição muitas vezes torna criminosos aqueles que nenhum vício poderia deleitar, que nenhuma luxúria poderia mover, que nenhuma avareza poderia enganar' [Lib. 4 in Luc.]. O pior da ambição é que poucas pessoas têm escrúpulos a respeito dela, e a razão é que, por esse vício, a consciência se deprava, porque se une a essa paixão e raramente recupera a sua integridade [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 1 et 2; qu. clxxxv, art. 2].

148. A inveja é uma tristeza que surge da contemplação do bem-estar do nosso próximo, quando imaginamos que o bem que lhe acontece deve ser em nosso detrimento, prejudicial à nossa própria glória e interesse; mas dos seus bens, só invejamos aqueles que nos trazem estima aos olhos do mundo -riquezas, dignidade, a amizade e os favores dos grandes, ciência, elogios, fama e tudo o que nos parece contribuir para o nosso crédito e nos trazer honra.

E é assim que a inveja nasce dentro de nós, quando vemos alguém mais rico, mais culto do que nós, outro mais sábio e mais virtuoso do que nós, outro que tem mais talento e habilidade, e a quem, portanto, gostaríamos de ver privado desses dons, para que também fosse privado dos elogios, da honra e de quaisquer outras vantagens que imaginamos ser mais devidas a nós do que a ele. Ora, o pecado consiste nisto: que, quando deveríamos, por caridade, regozijar-nos com a prosperidade do nosso próximo, ficamos apenas tristes com ela, desejando, em nosso orgulho, que ela fosse nossa, para que pudéssemos ser superiores ao nosso próximo em mérito; e este pecado é o pecado especial do diabo, como diz o Sábio: 'a inveja do diabo' [Sb 2,24]. O Espírito Santo nos ordena com toda justiça, por meio de São Paulo, que nos guardemos contra ele: 'Não nos invejemos uns aos outros' [Gl 5,26], pois é fácil pecar mortalmente de uma forma ou de outra. Mas, no entanto, quão comum é esse vício nas famílias, nas comunidades, em todos os estados de vida, entre altos e baixos, ricos e pobres, entre os seculares e até mesmo entre os próprios religiosos!

Todo esse mal provém de uma falsa consciência, que nos leva a acreditar que a inveja não é um grande pecado e, portanto, embora seja um mal grave, não é temida, nem evitada, nem nos esforçamos para nos corrigir dela. Esta reflexão é de São Cipriano: 'A inveja parece uma ofensa pequena, de modo que, enquanto nos parece leve, não é temida; enquanto não é temida, é desprezada; enquanto é desprezada, não é facilmente evitada e, assim, torna-se uma fonte secreta de ruína' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xxxiv, art. 6; et qu. xvi, art. 1 et 2 etc.; et qu. clviii, art. 11 et 14].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

DEPOIS DO MILAGRE DO SOL...

Naquela manhã de 13 de outubro de 1917, caía uma chuva torrencial em Fátima. Uma enorme multidão afluía à Cova da Iria por caminhos lamacentos e encharcados. Nem este cenário impactante de lamaçal completo impedia a gente humilde de se ajoelhar em profundo oração e recolhimento. E o céu se abriu então para o o milagre portentoso e tão conhecido do sol bailando no céu.

Um evento menor e igualmente extraordinário aconteceu então com a própria multidão reunida na Cova da Iria. Quando o sol voltou à sua condição normal, todas as pessoas presentes estavam com suas roupas impecavelmente limpas e secas.

domingo, 12 de outubro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Escutai, minha filha, olhai, ouvi isto: que o Rei se encante com vossa beleza!' (Sl 44)

Primeira Leitura (Est 5,1b-2;7,2b-3) - Segunda Leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a) -  Evangelho (Jo 2,1-11)

  12/10/2025 - SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA APARECIDA

'FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER'


Neste dia da solenidade de Nossa Senhora Aparecida, nós a encontramos junto com Jesus, como convidados de certas bodas em Caná. Não sabemos detalhes do evento, os nomes dos noivos ou do mestre de cerimônia, o tempo da celebração. Mas a presença de Jesus e de Maria naquela ocasião em Caná da Galileia são o testemunho vivo da santidade e das graças associadas àquela união matrimonial. Muitos teólogos manifestam inclusive que foi, neste enlace de santa vocação e harmonia, que Jesus elevou o casamento à condição de sacramento, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.

E o vinho veio a faltar. Nossa Senhora tem a clara percepção da situação constrangedora e aflitiva dos noivos e de suas famílias, porque faltou o vinho. É a Mãe que roga, que intercede, que suplica ao Filho Amado: 'Eles não têm mais vinho' (Jo 2, 3). Medianeira e intercessora de nossas aflições e angústias, de Caná até os confins da terra, Nossa Senhora leva a Jesus as súplicas de todos os seus filhos e filhas de todos os tempos. É ela que nos abre as portas da manifestação da glória de Jesus para a definitiva aliança dos céus com a humanidade pecadora, mediante a sua súplica de Mãe face à angústia humana: 'Fazei tudo o que Ele vos disser' (Jo, 2,5).

E eis que havia ali seis talhas de pedra, que foram 'enchidas até a boca' (Jo, 2,7). E a água se fez vinho, nas mãos do Salvador. Da angústia, faz-se a alegria; da aflição, tem-se o júbilo; da ansiedade, nasce o alívio e a serenidade. Alegria, júbilo, alívio e serenidade que são os doces frutos da plena santificação. Este vinho nos traz a libertação do pecado e nos coloca nas sendas do céu, pois nos deleita com as graças da virtude, do santo juízo, da sabedoria de Deus. Mas nos cabe encher nossas talhas de água até a boca, prover os nossos corações do mais pleno amor humano, para que a santificação de nossas almas seja completa no coração de Deus.

'Este foi o o início dos sinais de Jesus' (Jo, 2,11). Em Caná da Galileia e por Maria, mais que o primeiro milagre, a glória de Jesus foi manifesta à humanidade pecadora. O firme propósito pessoal em busca da virtude e da superação das nossas vicissitudes humanas é a água que será transformada no vinho pela graça e pela misericórdia de Deus em nossos corações aflitos e inquietos, enquanto não repousados na glória eterna. Enchei, portanto, as vossas talhas de água e fazei tudo o que Ele vos disser, com a intercessão de Maria. Eis aí a pequena e a grande via em direção ao Coração de Deus, que nos foi legada um dia em Caná da Galileia.

sábado, 11 de outubro de 2025

FRASES DE SENDARIUM (LXII)

'Se queres sofrer com paciência as adversidades e misérias desta vida, seja um homem de oração' 

(São Boaventura)

Rezai assim: 'Senhor, não vos peço não ter tentações ou sofrimentos e nem que se cumpra as minhas humanas vontades, mas que o vosso propósito para mim se realize em plenitude em cada dia da minha vida. Queria vos pedir, Senhor, possuir sempre esta serenidade, esta paz interior que vem de Vós, esta perseverança de fé até o último segundo do meu existir, esta alma atribulada e incansável em busca da santificação. Senhor, concedei-me a graça de colocar em prática este imenso amor que tenho pelas vossas coisas e ser um instrumento vivo do vosso infinito amor pelos homens'.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O MUNDO, INSENSATO MUNDO...

Assim que a tua devoção se for tornando conhecida no mundo, maledicências e adulações te causarão sérias dificuldades de praticá-la. Os libertinos tomarão a tua mudança por um artifício de hipocrisia e dirão que alguma desilusão sofrida no mundo te levou por oposição a recorrer a Deus. Os teus amigos, por sua vez, se apressarão a te dar avisos que supõem ser caridosos e prudentes sobre a melancolia da devoção, sobre a perda do teu bom nome no mundo, sobre o estado de tua saúde, sobre a necessidade de viver no mundo conformando-se aos outros e, sobretudo, sobre os meios que temos para salvar-nos sem tantos mistérios.

Filoteia, tudo isso são loucas e vãs palavras do mundo e, na verdade, essas pessoas não têm um cuidado verdadeiro de teus negócios e de tua saúde: Se vós fôsseis do mundo, diz Nosso Senhor, amaria o mundo o que era seu; mas, como não sois do mundo, por isso ele vos aborrece.

Veem-se homens e mulheres passarem noites inteiras no jogo; e haverá uma ocupação mais triste e insípida do que esta? Entretanto, seus amigos se calam; mas, se destinamos uma hora à meditação ou se nos levantamos mais cedo, para nos prepararmos para a santa comunhão, mandam logo chamar o médico, para que nos cure desta melancolia e tristeza. Podem-se passar trinta noites a dançar, que ninguém se queixa; mas por levantar-se na noite de Natal para a Missa do Galo, começa-se logo a tossir e a queixar de dor de cabeça no dia seguinte. Quem não vê que o mundo é um juiz iníquo, favorável aos seus filhos, mas intransigente e severo para os filhos de Deus?

Só nos pervertendo com o mundo, poderíamos viver em paz com ele, e impossível é contentar os seus caprichos. Veio João Batista, diz o divino Salvador, o qual não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: ele está possesso do demônio. Veio o Filho do Homem, come e bebe, e dizeis que é um samaritano. É verdade, Filoteia, se condescenderes com o mundo e jogares e dançares, ele se escandalizará de ti; e, se não o fizeres, serás acusada de hipocrisia e melancolia. Se te vestires bem, ele te levará isso a mal, e, se te negligenciares, ele chamará isso baixeza de coração. A tua alegria terá ele por dissolução e a tua mortificação por ânimo carrancudo; e, olhando-te sempre com maus olhos, jamais lhe poderás agradar. Às nossas imperfeições ele considera pecados, os nosso pecados veniais ele julga mortais, e malícias, as nossas enfermidades; de sorte que, assim como a caridade, na expressão de São Paulo, é benigna, o mundo é maligno.

A caridade nunca pensa mal de ninguém e o mundo o pensa sempre de toda sorte de pessoas; e, não podendo acusar as nossas ações, condena ao menos nossas intenções. Enfim, tenham os carneiros chifres ou não, sejam pretos ou brancos, o lobo sempre os há de tragar, se puder. Procedamos como quisermos, o mundo sempre nos fará guerra. Se nos demorarmos um pouco mais no confessionário, perguntará o que temos tanto que dizer; e, se saímos depressa, comentará que não contamos tudo. Espreitará todas as nossas ações e, por uma palavra um pouco menos branda, dirá que somos insuportáveis. Chamará avareza o cuidado por nossos negócios, e idiotismo a nossa mansidão. Mas, quanto aos filhos do século, sua cólera é generosidade; sua avareza, sábia economia; e suas maneiras livres, honesto passatempo. É bem verdade que as aranhas sempre estragam o trabalho das abelhas!

Abandonemos este mundo cego, Filoteia; grite ele quanto quiser, como uma coruja para inquietar os passarinhos do dia. Sejamos firmes em nossos propósitos, invariáveis em nossas resoluções e a constância mostrará que a nossa devoção é séria e sincera. Os cometas e os planetas parecem ter o mesmo brilho; mas os cometas, que são corpos passageiros, desaparecem em breve, ao passo que os planetas brilham continuamente. Do mesmo modo muito se parece a hipocrisia com a virtude sólida e só se distingue porque aquela não tem constância e se dissipa como a fumaça, ao passo que esta é firme e constante.

Demais, para assegurar os começos de nossa devoção, é muito bom sofrer desprezos e censuras injustas por sua causa; deste modo nós nos prevenimos contra a vaidade e o orgulho, que são como as parteiras do Egito, às quais o infernal faraó mandou matar os filhos varões dos judeus no mesmo dia de seu nascimento. Enfim, nós estamos crucificados para o mundo e o mundo deve ser crucificado para nós. Ele nos toma por loucos; consideremo-lo como um insensato.

(São Francisco de Sales, excertos da obra 'Filoteia ou Introdução à Vida Devota')

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (IV)

   

PARTE I - SOBRE A MORTE

IV. Sobre o Medo do Inferno

A morte ainda se torna mais amarga para nós pelo medo do inferno e pela visão clara da eternidade diante de nós. Pois quando estamos gravemente doentes e a morte nos encara, o terror que nos invade diante da perspectiva da eternidade é tão avassalador que ficamos cheios de medo. Pois vemos claramente que, em poucos dias, talvez poucas horas, devemos entrar na eternidade, e não sabemos o que nos espera lá. O medo de nos perdermos para sempre é tão grande que nos faz estremecer.

Além disso, o alarme que nos tortura é aumentado pela lembrança dos pecados pelos quais muitas vezes merecemos o inferno; pois nenhum homem pode ter certeza se fez penitência corretamente e se realmente obteve o perdão. Isso é explicado por uma passagem dos escritos do já mencionado Papa São Gregório, que descreve esse medo com as seguintes palavras: 'O homem justo que se preocupa verdadeiramente com sua salvação eterna pensará de tempos em tempos em seu futuro Juiz. Ele meditará, antes que a morte o alcance, sobre o relato que terá de fazer de sua vida. Se não houver grandes pecados pelos quais sua consciência o repreenda, ele ainda terá motivos para se alarmar por causa dos pecados diários aos quais talvez dê pouca atenção. Pois quantas vezes não pecamos em pensamento? É relativamente fácil evitar más ações, mas é muito mais difícil manter o coração livre de pensamentos desordenados. No entanto, lemos na Sagrada Escritura: Ai de vós, que concebeis o que é inútil e praticais o mal em vossos pensamentos (Mq 2,1) ou ainda: 'Em vosso coração praticais iniquidades' (Sl 62,3).

'Por isso, os justos estão sempre com medo dos terríveis julgamentos de Deus, pois estão conscientes de que todos esses pecados secretos serão levados a julgamento, como diz São Paulo: 'Naquele dia, Deus julgará os segredos dos homens' (Rm 2,16). E embora durante toda a sua vida um homem bom ande com medo do julgamento, esse medo aumentará notavelmente à medida que ele se aproxima do fim de seus dias. Diz-se de Nosso Senhor que, quando se aproximava a hora desua morte, Ele começou a ficar triste e com medo e, estando em agonia, orou por mais tempo. Não foi isso para nos ensinar como seria conosco no nosso fim, e que angústia e aflição nos dominariam?

Tais são as palavras do Papa São Gregório, calculadas para inspirar não só os pecadores, mas também os justos com medo, pois, como diz o santo, mesmo aqueles que não têm consciência de ter cometido pecados graves, estão cheios de apreensão em relação à sentença que lhes será imposta. Se os justos não estão isentos de alarme, o que podemos fazer nós, pobres pecadores, que sabemos ser culpados de muitas e múltiplas transgressões e que todos os dias acrescentamos pecado ao pecado? O que será de nós? O que podemos fazer? Não há nenhum meio que possamos empregar para obter a misericórdia de Deus? Não conheço melhor conselho do que aquele que o próprio Cristo nos dá nas palavras: 'Vigiai, pois, orando em todo o tempo, para que sejais considerados dignos de escapar de todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar diante do Filho do homem' (Lc 21,36).

Visto que Cristo nos indica a oração como o melhor e mais fácil meio, que cada um siga fielmente esta exortação e invoque diligentemente o Deus Todo-Poderoso e sua Santíssima Mãe, e todos os santos, implorando-lhes dia após dia que o protejam e confiando-lhes o seu fim último.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

A CIÊNCIA DE DEUS (VI)


A Bíblia não é um livro de ciências da natureza e os escritores sagrados não pretendiam ensinar, nos textos bíblicos, a natureza primordial das coisas do universo visível. Elementos simbólicos e figurados constituem abordagens inerentes à literatura bíblica e é, neste contexto, que devem ser analisados e interpretados os três primeiros capítulos de Gênesis, que sintetizam verdades fundamentais sobre Deus, a criação e a humanidade.

Santo Agostinho, por exemplo, não interpretou os 'Seis Dias' da criação como uma sequência real de tempo. Em vez disso, ele sustentou que o universo foi criado em um instante, com base em um processo gradual e natural de desenvolvimento por meio do desdobramento de potencialidades que Deus originalmente implantou na sua criação, e que existiam, em estado latente, na própria textura dos elementos originais do universo físico.

O significado teológico dos 'Seis Dias' do primeiro relato da criação em Gênesis expressa essencialmente que a sabedoria de Deus deu ao mundo criado ordem e propósito. Deus é a fonte do existir de todas as coisas; que ele criou livremente e com sabedoria divina. Nos três primeiros 'dias', as várias partes do mundo foram estabelecidas; nos três 'dias' seguintes, os vários seres vivos foram criados em sequência, culminando na humanidade; e finalmente chegou-se ao sétimo 'dia', tempo de descanso e adoração. Essa sequência simboliza que o universo físico foi feito para a vida, com ênfase especial de domínio no ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus com naturezas corpórea e espiritual, pelo que fomos criados para a comunhão e glória de Deus, em quem encontraremos consolo, descanso e a paz eterna.