segunda-feira, 6 de outubro de 2025

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XXV)

Carta Encíclica AUGUSTISSIMAE VIRGINIS MARIAE 

 [12 de setembro de 1897]

Papa Leão XIII (1878 - 1903)

sobre o Rosário de Nossa Senhora


Exortação à devoção para com Maria

1. Quem quer que considere o grau sublime de dignidade e de glória a que Deus elevou a augustíssima Virgem Maria, facilmente pode compreender que vantagem traz à vida pública e privada o contínuo desenvolvimento e a sempre mais ardente difusão do seu culto. De fato, Deus escolheu-a desde a eternidade para vir a ser Mãe do Verbo, que se encarnaria; e, por este motivo, entre todas as criaturas mais belas na ordem da natureza, da graça e da glória, Ele a distinguiu com privilégios tais, que a Igreja com razão aplica a ela aquelas palavras: 'Saí da boca do Altíssimo, primogênita antes de toda criatura' (Ecli 24, 5). Quando, pois, se iniciou o curso dos séculos, aos progenitores do gênero humano, caídos na culpa, e aos seus descendentes, contaminados pela mesma mancha, ela foi dada como penhor da futura reconciliação e da salvação.

2. Depois, o Filho de Deus, por sua vez, fez sua santíssima Mãe objeto de evidentes demonstrações de honra. De fato, durante a sua vida privada, Ele escolheu-a como sua cooperadora nos dois primeiros milagres por Ele operados. O primeiro foi um milagre de graça, e teve lugar quando, à saudação de Maria, a criança exultou no seio de Isabel; o segundo foi um milagre na ordem da natureza; e teve lugar quando, nas bodas de Caná, Cristo transformou a água em vinho. Chegado, depois, ao termo da sua vida pública, quando estava em via de estabelecer e selar com o seu sangue divino o Novo Testamento, Ele confiou-a ao seu Apóstolo predileto, com aquelas suavíssimas palavras: 'Eis aí tua mãe!' (Jo 19, 27).

Portanto, nós, que, embora indignamente, representamos na terra Jesus Cristo, Filho de Deus, enquanto tivermos vida nunca cessaremos de promover a glória dela. E, como sentimos que, pelo peso grande dos anos, a nossa vida não poderá durar ainda muito, não podemos deixar de repetir a todos os nossos filhos e a cada um deles em particular as últimas palavras que Cristo nos deixou como testamento, enquanto pendia da cruz: 'Eis aí tua Mãe!'. Oh! como nos consideraríamos felizes se as nossas recomendações chegassem a fazer com que cada fiel não tivesse na terra nada mais importante ou mais caro do que a devoção a Nossa Senhora, e pudesse aplicar a si mesmo as palavras que João escreveu de si: 'O discípulo tomou-a consigo' (Jo 19, 27).

3. Ora, ao aproximar-se o mês de outubro, não queremos que, nem também este ano, Veneráveis Irmãos, vos falte uma nossa Carta, para, com o ardor de que somos capazes, recomendar de novo a todos os católicos quererem ganhar para si mesmos e para Igreja, tão trabalhada, a proteção da Virgem, com a recitação do Rosário. Prática esta que, no descambar deste século, por divina disposição se tem maravilhosamente afirmado, para despertar a esmorecida piedade dos fiéis; como claramente atestam notáveis templos e célebres santuários dedicados à Mãe de Deus.

4. Depois de havermos dedicado a esta divina Mãe o mês de Maio com o dom das nossas flores, consagremos-lhe também, com afeto de singular piedade, o mês de Outubro, que é mês dos frutos. De fato, parece justo dedicar estes dois meses do ano àquela que disse de si: 'As minhas flores tornaram-se frutos de glória e de riqueza' (Ecli 24, 23).

A Confraria do Rosário

5. O espírito de associação, fundado na própria índole da natureza humana, talvez nunca tenha sido tão vivo e universal como agora. E certamente ninguém condenaria isto; se muitas vezes essa naturabilíssima tendência natural não fosse orientada para o mal: isto é, se os ímpios, movidos por um mesmo intento, não se reunissem em sociedades de vários gêneros, 'contra o Senhor e o seu Messias' (Sl 2, 2). Por outro lado, entretanto, pode-se discernir, e certamente com grandíssima alegria, que, também entre os católicos cresce o amor às associações pias: associações bem compactas, que se tornam como que famílias, nas quais os membros estão de tal forma ligados entre si pelo vínculo da caridade cristã, a ponto de parecerem, antes, de serem verdadeiramente irmãos.

E, de fato, se se elimina a caridade de Cristo, não pode haver fraternidade, como já energicamente demonstrava Tertuliano, dizendo: 'Somos vossos irmãos por direito de natureza, natureza que é mãe comum, se bem que sejais muito pouco homens, por serdes maus irmãos. Mas quão melhor convém o nome e a dignidade de irmãos àqueles que reconhecem por seu pai comum Deus, àqueles que se imbuíram do mesmo espírito de santidade, e que, embora nascidos do mesmo seio da comum ignorância, depois se nutriram da mesma luz de verdade!' (Tertuliano, Apolog. c. 39).

A forma destas utilíssimas sociedades, constituídas entre os católicos, é a mais variada: círculos, caixas rurais, recreatórios festivos, patronatos para a proteção da juventude, irmandades, e muitíssimos outros, todos instituídos com nobilíssimos intentos. Certamente, todas estas associações têm nomes, formas e fins próprios e imediatos modernos, mas são antiquíssimas na substância, pois se lhes podem distinguir os vestígios desde os inícios do cristianismo. Mais tarde foram reforçadas com leis, distinguidas com divisas próprias, enriquecidas de privilégios, ordenadas ao culto divino nas igrejas, ou então destinadas ao bem das almas e ao alívio dos corpos, e designadas com nomes diversos, segundo os tempos. E, com o correr do tempo, o seu número aumentou tanto, que, sobretudo na Itália, não há cidade, aldeia ou paróquia que não as tenhas muitas, ou ao menos uma.

6. Ora, entre essas associações não hesitamos em dar um lugar eminente à confraria que toma o nome do santo Rosário. Com efeito, se se considerar a sua origem, ela figura entre as mais antigas; porquanto é fama que a haja fundado o próprio Patriarca São Domingos; depois, se se lhe considerarem os privilégios, ela é riquíssima deles pela munificência dos nossos predecessores. Por último, forma e como que alma dessa instituição é o Rosário mariano, cuja eficácia já havemos, em outras circunstâncias, longamente tratado.

Eficácia do Rosário recitado em comum

7. Mas a eficácia e o valor do Rosário aparecem ainda maiores se o considerarmos como um dever imposto à confraria que dele tira o nome. Na verdade, ninguém ignora o quanto é necessária para todos a oração, não porque com ela se possam modificar os divinos decretos, mas porque, como diz São Gregório: 'Os homens, com a oração, merecem receber aquilo que Deus onipotente desde a eternidade decidiu dar-lhes' (Dialogorum Libros 1, c. 8). E Santo Agostinho acrescenta: 'Quem sabe bem rezar, sabe também viver bem' (In Psalmos 118).

E a oração justamente alcança a sua eficácia máxima em impetrar o auxílio do Céu, quando é elevada publicamente, com perseverança e concórdia, por muitos fiéis que formem um só coro de suplicantes. Isto resulta evidente dos Atos dos Apóstolos, onde se diz que os discípulos de Cristo, à espera do Espírito Santo prometido, 'perseveravam unânimes na oração' (At 1,14).

Os que oram deste modo certissimamente obterão sempre o fruto da sua oração. E isto justamente se verifica entre os confrades do santo Rosário. Com efeito, assim como a oração do Ofício divino feita pelos sacerdotes é uma oração pública e contínua, e por isto eficacíssima; assim também, em certo sentido, é pública, contínua e comum a oração dos confrades do Rosário: definido este, em razão disto, por alguns Pontífices Romanos, 'O Breviário da Virgem'.

8. Depois, conforme já dissemos, como as orações públicas têm uma excelência e uma eficácia maiores do que as privadas, por isto a Confraria do Rosário também foi chamada pelos escritores eclesiásticos 'milícia orante, alistada pelo Patriarca Domingos, sob as insígnias da divina Mãe'; isto é, daquela que a Sagrada Escritura e os fastos da Igreja saúdam como vencedora do demônio e de todas as heresias. E isto porque o Rosário mariano liga com um vínculo comum todos aqueles que podem associar-se a ela, fazendo-os, como que irmãos e co-milicianos.

E assim eles formam uma fortíssima falange, inteiramente armada e pronta a repelir os assaltos dos inimigos, quer internos, quer externos. Por isto, os membros desta pia associação podem com razão aplicar a si mesmos aquelas palavras de São Cipriano: 'Nós temos uma oração pública e comum, e, quando oramos, não oramos por um simples indivíduo, mas pelo povo todo, porque, quantos somos, formamos uma coisa só' (São Cipriano, De Oratione Dominica).

9. Aliás, a história da Igreja atesta a força e a eficácia destas orações, recordando-nos a derrota das forças turcas na batalha naval de Lepanto, e as esplêndidas vitórias alcançadas no século passado sobre os mesmos turcos em Temesvar, na Hungria, e perto da ilha de Corfu. Do primeiro fato permanece como monumento perene a festa de Nossa Senhora das Vitórias, instituída por Gregório XIII, e depois consagrada e estendida à Igreja universal por Clemente XI, sob o nome de festa do Rosário.

Justificação do Rosário

10. Pelo fato, pois, de estar esta milícia orante 'alistada sob a bandeira da divina Mãe', ela adquire uma nova força e se ilustra de nova alegria, como sobretudo demonstra, na recitação do Rosário, a frequente repetição da saudação angélica depois da oração dominical. Esta prática, longe de ser incompatível com a dignidade de Deus - como se insinuasse que nós devemos confiar mais em Maria Santíssima do que no próprio Deus - tem, ao contrário, uma particularíssima eficácia para o comover e no-lo tornar propício. De fato, a fé católica nos ensina que nós devemos orar não só a Deus, mas também aos santos (Concilum Tridentinum Sessio 25), embora de maneira diferente: a Deus, como fonte de todos os bens; aos santos, como intercessores.

'De dois modos pode-se dirigir a alguém um pedido' - diz São Tomás - 'com a convicção de que ele possa atendê-lo ou com a persuasão de que ele possa impetrar aquilo que se pede'. Do primeiro modo só oramos a Deus, porque todas as nossas preces devem ser dirigidas à consecução da graça e da glória, que só Deus pode dar, como é dito no salmo: 'A graça e a glória dá-a o Senhor' (Sl 83,12). Da segunda maneira apresentamos o mesmo pedido aos santos anjos e aos homens; não para que, por meio deles, Deus venha a conhecer os nossos pedidos, mas para que, pela intercessão deles e pelos seus méritos, as nossas preces sejam atendidas.

E por isto, no capítulo VIII, 4 do Apocalipse se diz que 'o fumo dos aromas, pelas orações dos santos, subiu da mão do anjo à presença de Deus' (S. Thomas de Aquino, II-II q. 83, a. 4). Ora, entre todos os santos que habitam as mansões bem-aventuradas, quem poderá competir com a augusta Mãe de Deus em impetrar a graça? Quem poderá com maior clareza ver no Verbo eterno de Deus as nossas angústias e as nossas necessidades? A quem foi concedido maior poder em comover a Deus? Quem como ela tem entranhas de maternal piedade? É este precisamente o motivo pelo qual nós não oramos aos santos do Céu do mesmo modo como oramos a Deus; 'porquanto à Santíssima Trindade pedimos que tenha piedade de nós, ao passo que a todos os outros santos pedimos que roguem por nós' (S. Th., II-II q. 83, a. 4).

Em vez disto, a oração que dirigimos a Maria tem algo de comum com o culto que se presta a Deus; tanto que a Igreja a invoca com esta expressão, que se costuma endereçar a Deus: 'Tem piedade dos pecadores'. Portanto, os confrades do santo Rosário fazem muito bem em entrelaçar tantas saudações e tantas preces a Maria, como outras tantas coroas de rosas. De feito, diante de Deus Maria é 'tão grande e vale tanto que, a quem quer graças e a ela não recorre, o seu desejo quer voar sem asas'.

Os confrades do Rosário imitam os anjos

11. À confraria de que estamos falando cabe, depois, outro título de louvor, que não queremos passar em silêncio. Cada vez que na recitação do Rosário mariano consideramos os mistérios da nossa salvação, de certo modo imitamos e emulamos os ofícios outrora confiados à milícia angélica. Foram eles, os anjos, que nos tempos estabelecidos revelaram estes mistérios, nos quais tiveram grande parte e intervieram infatigavelmente, compondo o seu semblante ora segundo a alegria, ora segundo a dor, ora segundo a exaltação da glória triunfal.

Gabriel é enviado à Virgem para lhe anunciar a Encarnação do Verbo eterno. Na gruta de Belém, os anjos acompanham com os seus cantos a glória do Salvador, há pouco vindo à luz. Um anjo adverte José a fugir e a dirigir-se para o Egito com o Menino. Enquanto Jesus no Horto sua sangue por causa da sua tristeza, um anjo com a sua palavra compassiva, conforta-o.

Quando Jesus, triunfando sobre a morte, se levanta do sepulcro, anjos noticiam isso às piedosas mulheres. Anjos anunciam que Ele subiu ao Céu, e prenunciam que, de lá, Ele voltará entre as falanges angélicas, para unir a elas as almas dos eleitos, e conduzi-las consigo para entre os coros celestes, acima dos quais 'foi exaltada a santa Mãe de Deus'.

Por isto, de modo especial aos associados que praticam a devoção do Rosário se adaptam às palavras que São Paulo dirigia aos novos discípulos de Cristo: 'Chegastes ao monte de Sião e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celeste e às miríades dos anjos' (Hb 12, 22). Que pode haver de mais excelente e de mais suave do que contemplar a Deus e rogá-lo juntamente com os anjos? Como devem nutrir uma grande esperança e uma grande confiança de gozarem um dia no Céu a beatíssima companhia dos anjos aqueles que na terra, de certo modo, compartilharam o ministério deles!

Auspícios par a difusão da confraria

12. Por tais motivos, os Pontífices Romanos sempre exaltaram com grandíssimos louvores esta confraria dedicada a Maria. Entre outros, Inocêncio VIII define-a como uma 'devotíssima confraria' (Inocêncio VIII, Constitutio "Splendor Paternae Gloriae", 26 de fev. 1491). Pio V atribui à influência dela os seguintes resultados: 'Os fiéis transformaram-se rapidamente em outros homens; as trevas da heresia se dissipam; e a luz da fé católica manifesta-se" (São Pio V, Constitutio Consueverunt RR. PP., 17 set. 1569). Sisto V, observando o quanto esta instituição tem sido fecunda de frutos para a religião, professa-se devotíssimo dela; muitos outros, enfim, enriqueceram-na de preciosas e abundantíssimas indulgências, ou colocaram-na sob a sua particular proteção, inscrevendo-se nesta, e manifestando-lhe por diversos modos a sua benevolência.

13. Movidos por estes exemplos dos nossos predecessores, nós também, ó Veneráveis Irmãos, vivamente vos exortamos e vos conjuramos - como já muitas vezes temos feito - a quererdes dedicar um cuidado todo particular a esta sagrada milícia; de modo que, graças ao vosso zelo, cada dia se organizem em toda parte novas falanges. Que, pela vossa obra e da parte de clero a vós subordinado, que tem cura de almas, venha o resto do povo a conhecer e a avaliar na justa medida a grande eficácia desta confraria, e a sua vantagem em ordem à eterna salvação dos homens.

O Rosário perpétuo

14. E tanto mais insistimos em tal recomendação quanto recentemente refloriu uma belíssima manifestação de piedade mariana: o chamado Rosário 'perpétuo'. De bom grado abençoamos esta iniciativa, e vivamente desejamos que vos apliqueis com solicitude e zelo ao seu incremento. De feito, nutrimos viva esperança de que não poderão deixar de ser bastante eficazes os louvores e as preces que saem incessantemente da boca e do coração de uma imensa multidão, e que, alternando-se dia e noite pelas várias regiões do mundo, unem a harmonia das vozes à meditação das divinas verdades.

E certamente a continuidade destes louvores e destas preces foi prefigurada pelas palavras com que Ozias cantava a Judite: 'Bendita és tu, filha, ante o Senhor Deus altíssimo, sobre todas as mulheres da terra... porque Ele hoje tornou tão grande o teu nome, que o teu louvor nunca faltará nos lábios dos homens'. E a este augúrio todo o povo de Israel respondia em voz alta: 'Assim é, assim seja...' (Jd 18, 23. 25. 26).

Entrementes, como auspício dos benefícios celestes, em testemunho da nossa benevolência, de grande coração concedemos, no Senhor, a Bênção Apostólica a vós, Veneráveis Irmãos, ao clero e a todo o povo confiado à vossa fiel vigilância.

domingo, 5 de outubro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Não fecheis o coração, ouvi, hoje, a voz de Deus!' (Sl 94)

Primeira Leitura (Hab 1,2-3.2,2-4) - Segunda Leitura (2Tm 1,6-8.13-14) -  Evangelho (Lc 17,5-10)

  05/10/2025 - VIGÉSIMO SÉTIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM

'AUMENTA A NOSSA FÉ!'


'Aumenta a nossa fé!' (Lc 15,5). Eis o pedido dos apóstolos ao Senhor, naquele dia. Eis a nossa súplica ao Senhor através dos tempos: eu creio firmemente, Senhor, mas aumenta a minha fé! O crescimento da fé implica a fé professada, vivida no cotidiano de nossas vidas, alimentada por atos de piedade e devoção cristãs. O incremento da fé implica a fé testemunhada pela conduta de cristãos no mundo, na doação às necessidades do próximo, na prática de uma caridade submersa por completo na gratuidade do amor de Deus.

E a resposta de Jesus é incisiva: 'Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda...' (Lc 15,6), tornar-se-ia possível arrancar uma planta de raízes profundas e vigorosas e arremessá-la ao mar, seria possível mover as montanhas de lugar e fazer portentos ainda maiores. Pois a fé mobiliza forças inauditas e incompreensíveis aos valores humanos, mas possíveis para a Santa Vontade de Deus, que não conhece abismos ou limites.

E Jesus, com a parábola do senhor e do seu empregado, resume o que deve ser a prática do exercício cristão da fé, como dever e obrigação, não como apropriação de mérito ou regalia de gratidão. A fé plena nos exige a caridade despojada, a entrega cotidiana às graças de Deus nas nossas pequenas ações de cada dia. Sejamos 'servos inúteis' (Lc 15,10) na consumação completa do nosso eu em nossas ações para e tão somente à glória de Deus.

A fé é 'o precioso depósito que, com a ajuda do Espírito Santo, habita em nós' (2Tm 1,14). Na confiança irrestrita à vontade do Pai e na completa dependência aos seus desígnios, achemos consolação apenas em viver para servir e servir sem reservas, como oferta ao Senhor da vida e submissos à Santa Vontade de Deus, pois o homem justo não morrerá jamais e 'viverá por sua fé' (Hab 1,4).

sábado, 4 de outubro de 2025

TESOURO DE EXEMPLOS II (43/46)

 

43. UMA VERDADEIRA EDUCADORA

Aos 20 de março de 1869 morria no Tirol (Austria) uma educadora por nome Joana da Cruz. Depois que ela deu o último suspiro, todos diziam: 'Morreu uma santa! Sim, morreu uma santa!'

Os que haviam frequentado a sua escola gostavam de contar a impressão que sentiam cada vez que a viam entrar na classe. 'Parecia-nos - diziam - que era Jesus que entrava. Falava como Jesus. Comportava-se como Jesus. De seus olhos e de todo o seu ser resplandecia a imagem de Jesus'. Aquela santa educadora revestira-se realmente de Jesus Cristo.

44. A TENTAÇÃO E O SINAL DA CRUZ

Santa Margarida, mártir, era uma donzela de rara beleza. Aos dezesseis anos de idade, dirigiu-se a seu pai, que era pagão, e disse-lhe: 
➖ Meu pai, quero confiar-lhe um segredo. O senhor é sacerdote dos ídolos; eu, porém, sou batizada e creio em Jesus Cristo.

Imediatamente apoderou-se daquele homem um furor selvagem. Atirou-se sobre a filha, como uma fera e logo mandou enviá-la ao cárcere. Na prisão apareceu-lhe o demônio, murmurando-lhe ao ouvido: 'Ora, vamos, não seja tola. Você é jovem e bela. Aí bem perto a espera um noivo pagão, rico e nobre; com ele você viverá dias felizes. Abandone a Jesus'.

Quereis saber o que fez Margarida nessa terrível tentação, nesse perigo iminente de perder a sua alma? Devotamente fez o sinal da cruz e, no mesmo instante, o demônio desapareceu. Aproximou-se dela o Anjo da Guarda e a consolou. Passados alguns dias foi Margarida conduzida ao lugar do martírio. 

Diante daquela juventude radiante, daquela formosura encantadora, o algoz ficou comovido e a espada vacilou em sua mão. Iria ele desistir de dar o golpe? Iria ela perder, a palma do martírio? Margarida fez o sinal da cruz e disse: 'Dê o golpe, irmão; a cruz é minha força!'
Inclinou a cabeça e colheu a palma do martírio. A cruz deu-lhe a Vitória.

45. POR QUE A MORTIFICAÇÃO?

São Nilo, antes de sua conversão, pecara contra a santa pureza. Converteu-se. E desde a sua conversão jamais comeu carne, jamais bebeu vinho ou outra bebida alcoólica. Comia somente legumes e frutas, bebia somente água. Renunciou, igualmente, ao seu leito macio e dormia sobre tábuas. A sua penitência, a sua mortificação foi sincera, foi perseverante; nunca mais recaiu nas antigas faltas.

Dizem os mestres espirituais que o uso de muita carne torna o homem sensual e propenso ao pecado; o vinho por sua vez, e em geral as bebidas alcoólicas, são a causa de graves tentações impuras.

46. O PODER DA CRUZ

O caso que vou contar é engraçado, mas dá-nos uma preciosa lição sobre o poder da santa cruz. Tinham os monges de certo convento o sagrado dever de descer todos os dias à igreja e, ali, sentando-se o Abade em sua grande cadeira de superior, e eles nos bancos do presbitério, cantavam os louvores de Deus.

Sucedeu que, um dia, o santo Abade Leufrido se achava adoentado em seu pobre leito e não pode descer para presidir ao oficio em sua igreja. O demônio, que vive rodeando também os santos e servos de Deus, achou que era chegada a ocasião de todos os monges lhe prestarem reverência. Tomou, pois, o hábito e a figura do Abade, desceu com os outros ao presbitério e sentou-se depressa na grande cadeira com ar de importância. Todos os monges fizeram-lhe reverência; mas um deles, chegando atrasado por vir da cela do Abade, viu com espanto outro Leufrido ali sentado.

Voltando imediatamente à cela do superior, disse alvoroçado:
➖ Dom Abade, que é isso? Estais ao mesmo tempo em dois lugares? Acabo de encontrar-vos sentado no presbítero, e estais aqui... o que é isso?
Caiu o Abade na conta do diabólico estratagema e, sentindo-se com forças bastante, foi depressa à igreja; mas, antes de entrar, no presbitério, traçou o sinal da cruz em todas as portas e janelas. Entrou, depois, no presbitério e, armado de um bom chicote molhado em água benta, começou a açoitar o fingido Abade.

O demônio fugiu espavorido e Leufrido 0 seguiu. O demônio queria passar por uma porta e, embora estivesse aberta, voltou correndo; aproximou-se de uma janela, e não conseguiu passar, porque em toda parte encontrava pela frente o sinal da cruz. O Abade surrou o demônio a valer; os monges riam-se a bandeiras despregadas; e o diabo escapou, afinal, por uma chaminé! É que o santo se esquecera de fazer ali o sinal sagrado...

Leufrido tomou, então, a palavra e explicou aos religiosos que Deus permitira aquela cena para que eles conhecessem o poder da Cruz e, nas tentações, não deixassem de benzer-se com o sinal sagrado, que o demônio tanto teme e detesta.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos' - Volume II, do Pe. Francisco Alves, 1960; com adaptações)

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

SOFRER COM CRISTO OU SOFRER SEM CRISTO


'Você pode sofrer com Cristo ou sofrer sem Ele'

Essa é a nossa verdadeira e decisiva escolha. Porque viver é uma luta constante e impossível sem tribulações de toda espécie. O Céu não é aqui. Aqui é o caminho para o Céu, moldado e construído por aflições, quedas, tropeços, sofrimento... Sim, há que se desejar e buscar ardentemente a suavidade da graça, a paz interior, a felicidade de uma vida simples e com saúde. Mas tudo - tudo mesmo - nesta vida, é transitório e fugaz. O que se apreende hoje com força nas duas mãos, amanhã é apenas fumaça que se esvai entre os dedos. O que hoje nos impulsiona como artífices de toda obra e toda intenção, amanhã nos abandona à prostração completa de corpo e de alma.

Eis, portanto, a única via de viver neste mundo: um caminho de pedras, um longo caminho de muitas pedras... cuja medida é a cruz que se leva nesta longa via. O sofrimento não é uma atribuição exclusiva dos santos, a dor não é intrínseca aos arautos da graça divina. O que separa os filhos dos homens dos filhos de Deus é a maneira com que cada um leva a sua cruz, se a renega e se revolta contra ela, ou se a acolhe e a abraça como instrumento de graça e salvação.

Viver é carregar a cruz de cada dia com Cristo ou sem Cristo. Para uns, sofrimento perdido e caminho sem rumo. Como filhos de Deus, a nossa escolha é simples: sofrer com Cristo e compartilhar a nossa cruz com a Cruz do Calvário: 'Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve (Mt 11,28-30).

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

SOBRE ANJOS E ARCANJOS


Que há anjos, muitas páginas da Sagrada Escritura o atestam. Mas é preciso saber que a palavra 'anjo' designa a sua função: 'ser mensageiro'. E chamamos 'arcanjos' aos que anunciam os grandes acontecimentos. Foi assim que o arcanjo Gabriel foi enviado à Virgem Maria; para este ministério, para anunciar o maior de todos os acontecimentos, impunha-se enviar um anjo da mais alta estirpe.

Do mesmo modo, quando se tratou de manifestar um poder extraordinário, foi Miguel que foi enviado. Na verdade, a sua ação, tal como o seu nome que quer dizer 'Quem como Deus?', faz compreender aos homens que ninguém pode realizar o que compete apenas a Deus. O antigo inimigo, que desejou por orgulho fazer-se semelhante a Deus, dizia: 'Eu subirei aos céus; erigirei o meu trono acima das estrelas; serei semelhante ao Altíssimo' (Is 14,13).

Mas o Apocalipse diz-nos que, no fim dos tempos, quando for abandonado à sua própria força, antes de ser eliminado pelo suplício final, ele terá de combater contra o arcanjo Miguel: 'Houve um combate nos céus: Miguel e os seus anjos combateram contra o Dragão. E também o Dragão combatia com os seus anjos; mas não venceu e foi precipitado no abismo' (Ap 12,7).

À Virgem Maria, foi então Gabriel, cujo nome significa 'Força de Deus', que foi enviado; não é verdade que ele vinha anunciar aquele que quis manifestar-se numa condição humilde, para triunfar do orgulho do demônio? Foi, pois, pela 'Força de Deus' que foi anunciado aquele que vinha como 'o Senhor dos exércitos, poderoso nos combates' (Sl 23,8).

Quanto ao arcanjo Rafael, o seu nome significa 'Deus cura'. Na verdade, foi ele que livrou das trevas os olhos de Tobias, tocando-os como toca um médico vindo do céu (Tb 11,17). Aquele que foi enviado para cuidar o justo na sua enfermidade merece bem ser chamado 'Deus cura'.

(São Gregório Magno)

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

LADAINHA DE SANTA TERESINHA DE JESUS


Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eu vos agradeço todos os favores e todas as graças com que enriquecestes a alma de vossa serva Teresa do Menino Jesus durante os 24 anos que passou na Terra. Pelos méritos de tão querida santa, concedei-me a graça que ardentemente vos peço [fazer o pedido por intercessão se Santa Teresinha], se este estiver conforme a Vossa Santíssima vontade e para salvação de minha alma.

Ajudai minha fé e minha esperança, ó Santa Teresinha, cumprindo, mais uma vez, sua promessa de que ninguém vos invocaria em vão, derramando sobre nós uma chuva de rosas.

 Santa Teresinha do Menino Jesus, 
Rogai por nós. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. Amém. [repetir após cada uma das 24 invocações abaixo]
 Pequena Rosa de Jesus, ...
 Filha favorita de Maria, ...
 Esposa fiel de Jesus, ...
 Mãe de inúmeras almas, ...
 Exemplo de santidade, ...
 Milagre das virtudes, ...
 Prodígio de milagres, ...
 Virgem Prudente, ...
 Heroína da fé, ...
 Anjo de caridade, ...
 Violeta da humildade, ...
 Mistica passionária, ...
 Lírio Puríssimo do Carmelo, ...
 Flor seleta da Igreja, ...
 Rosa incensada de amor, ...
 Mártir de amor, ...
 Mensageira da Paz, ...
 Encanto do Céu e da Terra, ...
 Padroeira das Missões, ...
 Semeadora de rosas, ...
 Mestra da infância espiritual, ...
 Advogada dos sacerdotes, ...
 Aquela que prometeu passar o seu Céu fazendo o bem na Terra, ...

terça-feira, 30 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLI)


141. São Gregório e São Tomás ensinam que se pode pecar de quatro maneiras diferentes por meio de atos de orgulho. A primeira é quando consideramos que possuímos algum bem, seja corporal ou espiritual, por nós mesmos, e nos gloriamos dele como se realmente nos pertencesse, sem pensar em Deus, que é o doador de todos os bens. Foi com esse orgulho que Arfaxad, rei dos medos, pecou quando se gloriou no poder de seu enorme exército; e o rei Nabucodonosor pecou da mesma forma quando se vangloriou da construção da Babilônia: 'Não é esta a grande Babilônia que eu construí com a força do meu poder?' [Dn 4,27]. Da mesma forma, o homem rico, mencionado em São Lucas, pecou quando se deleitou com suas riquezas e as considerou como sua própria substância, dizendo: 'Vou reunir todas as coisas e direi à minha alma: alma, você tem muitos bens guardados para muitos anos' [Lc 12,18-19].

E, portanto, podemos dizer que é por meio desse orgulho que todos pecam: aqueles que se lisonjeiam e se gastam em ostentação, glorificando-se por seus grandes talentos, ou por suas riquezas, ou por sua prudência, ou por sua eloquência, ou pela beleza de seu corpo, ou pelo custo de suas vestes, como se Deus não tivesse nada a ver com isso, e que, estimando-se imoderadamente, desejam também ser estimados pelos outros. Este é o verdadeiro orgulho, porque se Deus nos deu todas essas coisas boas para nosso uso, Ele reservou a glória delas para si mesmo: 'A Deus somente seja dada a glória e a honra' [1Tm 1,17] e quem usurpa essa glória é culpado de orgulho.

E, portanto, devemos observar com São Tomás que, para cometer um pecado de orgulho, não é necessário declarar positivamente que esses dons não vêm de Deus, pois isso seria um pecado de infidelidade, mas basta que nos gloriemos deles como se nos pertencessem, 'o que se relaciona com o orgulho' [2a 2æ, qu. clxii].

142. A segunda maneira pela qual podemos pecar em nossas ações por orgulho é quando, sabendo e admitindo que recebemos tal ou tal dom de Deus, atribuímos isso interiormente ao nosso próprio mérito e desejamos que os outros façam o mesmo, e em nosso comportamento exterior nos comportamos como se realmente merecêssemos receber esses dons. Foi assim que Lúcifer pecou por orgulho; pois, apaixonado por sua própria beleza e nobreza, e embora reconhecesse que Deus era o autor de tudo isso, ele teve a presunção de pensar que ele mesmo o merecia e era digno de sentar-se ao lado de Deus no mais alto dos céus: 'subirei ao céu' [Is 14,13].

E, por isso, São Bernardo o repreende, dizendo: 'Ó alma orgulhosa, que obra fizeste para merecer o teu descanso?' O que fizeste, ó ousado, para merecer tal honra? E é assim que pecaram por orgulho aqueles réprobos a quem se faz alusão -  em Lc 17,9 - que, como o fariseu, deram graças a Deus pelo bem que fizeram e pelo mal que deixaram de fazer: 'Ó Deus, eu te dou graças...', mas, ao mesmo tempo, tiveram a presunção de se considerarem de mérito singular, 'confiando em si mesmos'.

Assim, todos aqueles que pecam presumindo que mereceram qualquer bem de Deus são condenados por orgulho, porque, ao atestarem seu próprio mérito, tornam Deus devedor dessa graça, que não seria mais graça se a tivéssemos merecido. Podemos muito bem nos permitir, com Jó, dizer que, por nossos pecados, merecemos a ira de Deus e todo tipo de mal: 'Oh, que meus pecados, pelos quais mereci a ira, fossem pesados na balança' [Jó 6,2], mas não podemos dizer que merecemos a graça ou qualquer bem, como diz São Paulo: 'Se é por graça, não é agora por obras; caso contrário, a graça não é mais graça' (Rm 11,6].

E cada um de nós deve dizer com o mesmo humilde São Paulo: 'Pela graça de Deus sou o que sou' [1Cor 15,10]. Se sou rico, nobre, são ou possuo quaisquer outros dons, tudo isso vem de Deus, que me fez assim, não por meus próprios méritos, mas unicamente por sua própria misericórdia e bondade. Quer eu me abstenha do mal ou faça o bem, devo tudo isso não ao meu próprio mérito, mas à graça de Deus, que me assiste com a sua misericórdia: 'Pela graça de Deus sou o que sou'. E qualquer um que atribua o que é ou o que tem aos seus próprios méritos é culpado de orgulho e apropria-se do que deveria dar à misericórdia e à graça de Deus. Por isso, a Santa Igreja sabiamente termina suas orações com estas palavras: 'Por Jesus Cristo, nosso Senhor'... E com isso protestamos à Divina Majestade que pedimos as dádivas mencionadas nessas orações pelos méritos de Jesus Cristo e que, se nossas orações forem ouvidas, será somente pelos méritos de Jesus Cristo.

Este é um ponto que merece toda a atenção, para que não caiamos por inadvertência no mais terrível orgulho. E Santo Agostinho nos exorta a lembrar que não só todo o bem que temos vem de Deus, mas também que o temos somente por sua misericórdia e não por nossos próprios méritos. 'Quando o homem vê que todo o bem que tem vem da misericórdia de Deus e não de seus próprios méritos, ele deixa de ser orgulhoso' [Sl 84].

143. A terceira maneira pela qual podemos pecar por orgulho é quando atribuímos a nós mesmos algum bem - de qualquer tipo - que, na verdade, não possuímos, seja estimando-nos por esse bem imaginário que existe apenas em nossos pensamentos e desejando que os outros também nos estimem por isso, seja realmente possuindo-o, seja apenas desejando ter esse bem que não temos para poder nos vangloriar e nos gloriar nele, tudo isso é orgulho detestável.

Foi assim que o bispo de Laodicéia pecou, estimando-se rico em méritos quando era apenas desprezível; e, por isso, Deus lhe disse que o vomitaria da sua boca: 'Começarei a vomitar-te da minha boca, porque dizes: sou rico e não tenho necessidade de nada, e não sabes que és miserável e pobre' [Ap 3,16.17]. E é com esse tipo de orgulho que todos pecam, quer se considerem a si mesmos, quer procurem ser considerados pelos outros, em palavras ou ações, como mais ricos, mais sábios, mais importantes ou mais virtuosos do que realmente são.

Pode ser um ato de virtude desejar essas coisas para algum fim honroso, por exemplo, desejar mais conhecimento para poder servir à Santa Igreja, desejar riquezas para poder dar mais esmolas; mas desejar essas coisas para não parecer inferior aos outros ou para adquirir mais estima é apenas orgulho, e como são poucos os que não estão infectados com esse orgulho! Um por uma coisa, outro por outra, quase todos os homens procuram ser estimados acima do que realmente são - e isso sem o menor escrúpulo.

Às vezes, pode ser que o pecado não seja tão grave, seja porque não se trata de um desejo deliberado, seja porque a natureza da ofensa é muito leve; mas, por outro lado, é em si mesmo sempre um pecado muito grave, porque, por meio desse orgulho, o homem não permanece mais sujeito à regra que lhe foi dada por Deus: contentar-se com o seu próprio estado. São Tomás diz: 'Isso é evidentemente da natureza do pecado mortal' [2a 2æ, qu. clxii, art. 5 et 6] e sua doutrina sobre esse ponto é que, quanto maior for o dom do qual nos gloriamos, embora não o possuamos, maior é o nosso orgulho. Portanto, é pior fingir ser santo do que fingir ser nobre ou rico, porque a santidade é um dom maior do que a posição social ou a riqueza. 

E o hábito de desculpar os pecados que cometemos também pertence a esse tipo de orgulho, porque quando nos desculpamos e dizemos que não somos culpados, afirmamos nossa inocência e nos atribuímos uma inocência que não possuímos. E quantas vezes pecamos assim por orgulho, sem nem mesmo saber! São Tomás também atribui ao orgulho o esforço de esconder os nossos pecados e, assim, desculpar e atenuar a maldade deles em nossas confissões [Ibid. art. 4].

144. A quarta maneira pela qual pecamos por orgulho é quando usamos qualquer dom que possamos ter para parecer distintos ou nos considerarmos melhores do que os outros, e para sermos mais estimados e honrados do que eles. Tudo o que temos de bom, seja no corpo ou na alma, na natureza, na fortuna ou na graça, é um dom de Deus, e usar esses dons para tentar ser mais visível do que os outros é orgulho.

É com esse orgulho que o fariseu no Templo considerava sua própria bondade e se colocava acima dos outros, especialmente do publicano: 'Eu não sou como os demais homens, desonestos, injustos, adúlteros, tal como este publicano' [Lc 18,11]. Ele se estimava acima de todos e era, na realidade, o mais orgulhoso de todos. Foi também com esse orgulho que os discípulos pecaram quando se glorificaram em seu dom singular de poder expulsar demônios: 'E eles voltaram com alegria, dizendo: Senhor, até os demônios nos estão submetidos' [Lc 10,17], e nosso abençoado Senhor lhes respondeu com toda a justiça: 'Eu vi Satanás cair do céu como um raio' - como se Ele quisesse dizer - 'Cuidem-se para não se exaltarem como o orgulhoso Lúcifer, para que não caiam como ele caiu'.

São Gregório, de fato, faz esta reflexão de que não há orgulho que se assemelhe tanto ao orgulho diabólico quanto este: 'Isso se aproxima muito de uma semelhança diabólica' [Lib. 23. Mor. cap. iv]. Quem quer que deseje exaltar-se acima dos outros imita Lúcifer, que desejava ser o primeiro entre os anjos e o mais próximo do trono de Deus. Este foi o pecado de Lúcifer quando se deteve em seu desejo de ser exaltado: 'E disseste em teu coração: Eu subirei sobre as nuvens mais altas!' [Is 14,14]. E aqueles que estão sempre tramando para seu próprio avanço e estão insatisfeitos com sua própria condição pecam assim como Lúcifer pecou: 'Subirei!' e devemos nos proteger contra esse pecado diabólico, como diz São Paulo: 'Para que, ensoberbecidos, não caiamos no julgamento do diabo' [1Tm 3,6].
 
E, além disso, devemos também observar o que o mesmo santo pontífice nos diz, que muitas vezes caímos neste pior tipo de orgulho: 'Neste quarto tipo de orgulho, a mente humana cai com muita frequência' e não há dúvida de que é realmente um pecado grave, pois com isso ofendemos tanto a Deus como ao nosso próximo. E quantos homens e mulheres existem, tanto religiosos como seculares, de todos os estados e condições, que cometem este pecado de orgulho com tanta frequência que se torna um hábito predominante neles.

Na prática, percebemos que todos os homens desejam se distinguir em sua arte particular, por mais inferior que seja, e todos buscam primeiro ser estimados tanto quanto os outros e, depois, se distinguir mais do que os outros - Eu subirei! - cada um em sua própria esfera e também fora dela. O homem rico se considera maior do que o homem culto por causa de suas riquezas; o homem culto se considera maior do que o homem rico por causa de seu conhecimento; o homem casto se considera melhor do que aquele que dá esmolas, e aquele que dá esmolas se considera superior ao homem casto. Quanto orgulho! E, no entanto, poucas pessoas estão dispostas a reconhecer que são realmente orgulhosas.

 Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)